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Flores balzaquianas

Posted by on 02/11/2020

Ao chamar a atenção de todos os burgueses sobre os abusos da Igreja Romana, ela disse, Lutero e Calvino fizeram nascer na Europa um espírito de investigação que iria levar os povos a querer examinar tudo. O exame conduz à dúvida. No lugar de uma fé necessária às sociedades, eles carregaram consigo e muito tempo depois deles uma filosofia curiosa, armada de martelos, ávida por ruínas. A ciência lançou-se brilhante com suas falsas clarezas a partir do seio da heresia. Tratava-se muito menos de uma reforma da Igreja do que da liberdade indefinida do homem que é a morte de todo poder.

Trecho retirado do ensaio histórico “Sur Catherine de Médicis”, escrito por Honoré de Balzac (1799-1850)

 

    Prezados leitores, depois de muito tempo estou de volta. Como é cada vez mais perigoso e inútil falar sobre o presente, pretendo falar sobre o passado. Se antes da pandemia da covid-19 já tínhamos polêmicas amargas sobre quem é a favor ou contra Bolsonaro, Lula, Moro, Donald Trump, Vladimir Putin, agora foi adicionada à nossa carteira de assuntos que causam cizânia ser a favor ou contra a cloroquina, a vacina, a quarentena.

    É inútil dar opiniões sobre tais assuntos porque as pessoas discordam sobre os fatos, então não há fundamentos para a discussão. E elas discordam sobre os fatos porque há uma infinidade de meios de obter informações. Em última análise é preciso confiar na fonte pela qual você decidiu optar, mesmo porque será impossível ao pobre leitor de jornais, revistas, sites da internet, ir em loco confirmar o que foi relatado. Talvez todos nós acabemos optando em confiar naqueles provedores de informações que confirmam nossos pré-conceitos e valores arraigados. O que hoje chamam de fake news nada mais é do que antes chamávamos de meias-verdades, uma tentativa de mostrar os fatos sob o ângulo que melhor confirma aquilo em que acreditamos profundamente.

    Nesse sentido, também é perigoso falar sobre o presente, porque se estamos irremediavelmente atados à nossa concepção do mundo e procuramos narrativas dos fatos que se encaixam nela, tendemos a estigmatizar aqueles que discordam de nós, atribuindo-lhes um valor oposto àquele que atribuímos a nós mesmos. Afinal, estamos convencidos de estarmos certos a respeito da visão do quer acontece no mundo a ser adotada pelas pessoas que compartilham conosco os mesmos valores éticos, sociais e culturais.

    Daí minha opção por não mais tratar de questões da atualidade. O melhor a fazer é admitir que vivemos em um mundo em que o conjunto de crenças básicas está cada vez mais fragmentado, então para evitar disputas ferozes como as que vemos nas mídias sociais, com ataques pessoais, epítetos distribuídos a torto e a direito (racista, supremacista branco, facista, homofóbico, comunista, islamofóbico e por aí vai) achei por bem falar de flores. Flores, estas já esmaecidas, aliás tragadas pelo tempo, mas que deixaram alguma marca de sua passagem pelo mundo e dão ensejo a uma reflexão.

    Minha flor desta semana é Catarina de Médici (1519-1589), rainha da França de 1547 a 1559 e regente de 1560 a 1563 durante a minoridade do seu segundo filho, Carlos IX, na maneira pela qual ela foi descrita no livro mencionado na abertura deste artigo. Balzac não descreve a vida da florentina, bisneta do grande Lourenço, o Magnífico, sobrinha-neta de dois papas, Leão X e Clemente VII, do começo ao fim da sua vida. Como seu propósito é ilustrar o julgamento de valor que ele faz a respeito da sua atuação política, o escritor prefere enfocar alguns episódios que ilustram a qualidade de Catarina como líder, que tinha um objetivo, qual seja manter a monarquia que àquela época estava convulsionada pelas guerras de religião entre católicos e protestantes, das quais participavam a nobreza da França: o lado católico era liderado pelos Guise, que se diziam descendentes de Carlos Magno, e o lado protestante pelos Bourbon. A dinastia reinante, dos Valois, que seria extinta com a morte do último filho de Catarina, Henrique III, tentava equilibrar-se no poder em meio às ferozes disputas.

    Catarina teve a visão premonitória de que a reforma protestante, se não fosse extirpada, seria o fim da monarquia, porque em última análise só o pensamento único proporcionado por uma religião que se pretendia universal, a católica, poderia sustentar o poder dos reis. Balzac, com a visão retrospectiva proporcionada pela Revolução Francesa, pela derrubada da monarquia, e por sua frágil retomada depois da Era Napoleônica, considera a florentina uma gênia mal compreendida e caluniada que fez tudo o que podia para evitar que o edifício do poder fosse destruído pela eterna dúvida. E a tática que ela usou à exaustão foi dividir para governar, colocar os diferentes grupos sempre uns contra os outros para que eles se enfraquecessem mutuamente e permitissem que a Coroa sobrevivesse. Para tanto, Catarina ora apoiava os católicos, ora apoiava os protestantes.

    Um dos episódios descritos em “Sur Catherine de Médicis” que ilustram o maquiavelismo de Catarina ocorre ainda no reinado do seu primeiro filho, François II, fortemente influenciado pelos Guise e por sua esposa, Mary Stuart, que depois seria decapitada por ordem da rainha da Inglaterra, Elizabeth I. Os protestantes planejavam retirar os Guise do poder pela força e sabedores que Catarina encontrava-se refém deles, valem-se do filho do fornecedor de casacos de pele das duas rainhas Marie e Catarina, Christophe Lacamus, para entregar uma carta à rainha-mãe em que Luís de Bourbon, o príncipe de Condé, detalhe os planos de ataque militar. Christophe era um burguês convertido à reforma e se dispõe a correr imensos riscos pela causa. Ele é pego pelos homens dos Guise, torturado para confessar a participação de Catarina no complô, mas ele não confessa, o que salva a pele da florentina, que correu o risco de ser envida de volta à sua terra natal. Livre do perigo e grata, a rainha-mãe permite que o pai de Christophe, rico burguês, compre terras da Coroa, fazendo com que o filho se tornasse membro do parlamento e claro, católico para sempre.

    O maquiavelismo de Catarina revela-se na capacidade que ela tinha de analisar o caráter e manipular as pessoas para seus fins. Christophe era protestante convicto, mas ele também era um jovem ambicioso e inteligente que não queria morrer por uma causa. Quando o representante de Calvino na França pede que ele assassine o Duque de Guise, Christophe decide manter-se fiel à Coroa e avisa Catarina, pois esta soube reconhecer o valor do jovem, ao contrário do chefe dos protestantes, o príncipe de Condé, que via no fervor religioso de burgueses reformados como Christophe um mero instrumento para conquistar o poder, e revelou-se ingrato depois de Christophe ter sido torturado e não ter revelado nada de comprometedor.

    Nesse sentido Balzac não admira Catarina por suas qualidades morais, mas por sua liderança política. Era uma mulher com vocação para exercer o poder, pois não lhe faltava capacidade intelectual, e em fazendo isso não teve escrúpulos em fazer o que tinha de ser feito para que a Coroa permanecesse intacta, mesmo porque o próprio Calvino, implacável nas suas certezas religiosas, fez uso de violência repetidas vezes para destruir a Igreja Católica.

    Quando o rei Francisco II fica doente, Catarina impede que um cirurgião, Ambroise Paré, faça uma operação no cérebro do seu filho que lhe salvaria a vida, porque considerava que se ele continuasse rei a influência nefasta dos Guise continuaria. E em 24 de agosto de 1572, na noite do casamento da sua filha Marguerite com Henrique de Bourbon, o irmão mais velho de Luís e protestante como ele, foi de Catarina a ordem de massacrar os protestantes, no que ficou conhecido como a Noite de São Bartolomeu. Tudo para que nenhum grupo ficasse por demais forte que ameaçasse o trono dos Valois.

    Assim como Balzac não admira Catarina por ter sido boa mãe, porque ela nunca foi, ele também não admira a florentina por ter sido boa católica, pois ela claramente tinha como única crença as ciências ocultas, tais como praticadas por seu astrólogo, Cosimo Ruggiero. Catarina sabia que o catolicismo era o único fundamento possível para o poder monárquico, pois a fé única proporcionaria coesão social e impediria atos de rebeldia, mas nunca praticou as virtudes cristãs, apesar de ter sido criada em conventos. A grandeza dela esteve no papel que exerceu de tentar retardar a ruína do edifício da monarquia cristã que tinha permanecido incólume por séculos. Se as lutas religiosas continuaram por quase sessenta anos depois de sua morte, até a assinatura da Paz de Westfália, em 1648, que estabeleceu o direito de cada Estado de decidir qual seria a religião nacional, não foi culpa de Catarina que foi ultrapassada pelas paixões coletivas, ela uma mulher pouco dada à paixão.

    A sutileza do retrato pintado por Balzac faz jus à sutileza da personagem: nem santa, nem monstra, mas uma mulher que sabia ver o que os outros não viam, detectar as fraquezas e qualidades das pessoas, estabelecer prioridades e ser implacável na consecução delas, mostrando consistência no longo prazo. Enfim, alguém que deixou um legado de preservação da monarquia das facções, e não, como observa Balzac em outro livro (Splendeurs et Miséres des Courtisanes) um rastro de destruição, um Robespierre, o incorruptível líder dos jacobinos durante o Terror (1792-1794) que mandou à guilhotina milhares de pessoas e acabou acelerando o fim da Revolução Francesa e o advento do império de Napoleão.

    Prezados leitores, quem quiser aproveitar este mergulho no passado para fazer reflexões sobre o presente que o façam. Mas neste ponto deixo-os à vontade, porque, guardadas as devidas proporções, cada um pertence a uma tribo e não há hoje uma Catarina de Médici, para perceber para onde caminha o vento da História e estabelecer aonde devemos ir ou o que devemos evitar. Cada um que navegue seu barquinho com sua própria bússola.

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