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Sobre cruzes e passarolas portuguesas

Posted by on 17/02/2021

Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o retângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Ofício para o prenderem, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, […] e já saem a informar que fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere, e não advinham que o protege a grande abóbada celeste aonde eles nunca irão, é bem verdade que Deus escolhe os seus favoritos, doidos, defeituosos, excessivos, mas não familiares do Santo Ofício.

Trecho retirado do livro “Memorial do Convento”, do escritor português José Saramago (1922-2010), que descreve a demonstração do aeróstato, ou passarola, um invento voador do frade nascido em Santos Bartolomeu de Gusmão (1685-1724), perseguido pela Inquisição

Nunca na sua breve vida será capaz de produzir parábola que se recorde, dito que merecesse ter ficado na memória das gentes de Nazaré e ser legado aos vindouros, menos ainda um daqueles certeiros remates em que a exemplaridade da lição se percebe logo à transparência das palavras, tão luminosa que no futuro rejeitará qualquer intrometida glosa, ou, pelo contrário, suficientemente obscura, ou ambígua, para tornar-se nos dias de amanhã em prato favorito de eruditos e outros especialistas.

Trecho retirado do livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, do mesmo José Saramago, em que o autor apresenta José, pai de Jesus, fazendo uma irônica comparação com o destino de seu filho

    Prezados leitores, na semana passada eu tentei humildemente mostrar-lhes por meio de dois pequenos exemplos como Dostoiévski dá voz ao mesmo tempo a um velhaco cínico que defende o poder institucionalizado da Igreja Católica e a Jesus Cristo, que não era inocente, pois sabia da maldade do mundo, mas tinha fé e esperança de que um outro mundo era possível. Apesar de o escritor russo mostrar os diferentes pontos de vista, fica claro ao longo de sua obra que ele acreditava no cristianismo, que poderia ser resgatado das mãos dos burocratas da Igreja e dos hipócritas e servir de bússola moral e espiritual do homem.

    Diferente é a perspectiva de José Saramago, que sempre foi um ateu empedernido e assim morreu. O trecho que abre este artigo mostra o frei Bartolomeu de Gusmão fazendo sua passarola voar nos céus de Lisboa enquanto o Santo Ofício vai à sua busca para prendê-lo. Tanto no autor russo quanto no autor português a Inquisição é vista com maus olhos, no primeiro caso porque o que para ela era herético na verdade era a verdadeira prática cristã, no segundo caso a Inquisição inibe o livre pensamento e a inovação científica. Mas Dostoiévski e Saramago diferem pelo fato de que este não consegue ver nenhum aspecto redentor da religião, porque o que lhe importa são as condições materiais das pessoas e a Igreja nunca atuou para melhorá-las de maneira substancial, pelo contrário foi sempre fator de manutenção do status quo.

    No Memorial do Convento há de um lado o rei Dom João V, a rainha Dona Maria Ana, os outros nobres e cortesãos que são todos excelentíssimos católicos, seguem todos os ritos, nos mínimos detalhes, mas tudo é uma fachada hipócrita que serve para explorar o povo e prometer-lhe um paraíso futuro para negar-lhe condições dignas no presente terreno. Do outro lado, há o povo, as Blimundas e os Baltasares, que têm vidas precárias, feitas de muito trabalho e pouca recompensa. Quando eles ousam ter suas próprias crenças, diferentes dos dogmas impostos pela ortodoxia, são punidos com a fogueira.

    No Evangelho Segundo Jesus Cristo, essa crítica à religião dominante aprofunda-se porque José Saramago propõe-se a ir atrás da origem do mito de Jesus Cristo, contando a história do filho de um carpinteiro que morava em Nazaré de uma maneira materialmente plausível, que possa sustentar-se na realidade fática, sem a necessidade de recorrer a ideias como a virgindade de Maria ou a descida do céu de um anjo que anuncia à simples mulher de 16 anos que teria um filho. Tentando colocar Jesus Cristo, seu pai José, sua mãe Maria e seus irmãos e irmãs no contexto histórico e social da época, em que os judeus viviam sob o jugo dos romanos, Saramago desconstrói o mito, mas tal desconstrução, ao tornar o personagem mais importante da civilização ocidental mais humano, não o torna mesmo digno de respeito.

    O trecho citado na abertura deste artigo demonstra esse jogo duplo do autor português. José é mostrado como um trabalhador manual que não tinha nenhuma qualidade especial, não era um carpinteiro particularmente habilidoso e também não tinha o dom de encantar multidões com parábolas, ou ditos como seu filho o faria na sua vida adulta. De um lado a ironia fina de Saramago mostra que o fato de as palavras que Jesus Cristo teoricamente proferiu ao longo de seu curto período de pregação terem se eternizado na história, alçando o autor delas a uma glória inimaginável para um ser medíocre como seu pai, deve-se mais ao fato de elas terem sido manipuladas para atender determinados interesses, interpretadas a torto e a direito de acordo com as circunstâncias do momento, consideradas como tendo uma qualidade intrínseca que elas estavam longe de ter, pois muitas vezes eram obscuras o suficiente para que qualquer sentido pudesse ser-lhes atribuído.

    De outro lado, se Jesus Cristo teve a sorte de ter virado um mito, algo que José só adquiriu de maneira reflexa por ser seu pai, ambos tiveram uma breve vida e criando um meio de abreviar a vida de José na mesma idade em que foi abreviada a de seu filho, aos 33 anos, Saramago resgata José da sua insignificância comparativa e o coloca como um homem das classes baixas que sofrem as injustiças cotidianas perpetradas pelos donos do poder. Quando Jesus tem 12 anos estouram revoltas lideradas por Judas da Galileia contra o domínio romano na forma de guerrilhas em vários locais de Israel. José não participa de combates, mas comete a imprudência de ir atrás de um vizinho, Ananias, que combateu, mas que está mortalmente ferido em Séforis, para trazê-lo de volta a Nazaré. José acha Ananias, mas este morre e José acaba sendo preso pelos romanos e crucificado como rebelde, mesmo não tendo participado de nenhum combate. Mas os romanos precisavam dar exemplo para demover os judeus de se rebelarem de novo, então José preenche a cota necessária.

    E assim José termina sua vida aos 33 anos crucificado não para ressuscitar e juntar-se à direita de Deus pai como ocorrerá anos depois com seu filho, mas servir de bode expiatório e atender os interesses de dominação dos romanos, que usavam a crueldade da morte por crucificação como arma psicológica para manipular os sobreviventes. Sob essa perspectiva, a cruz é destituída do seu aspecto teológico e inserida na materialidade das vidas desgraçadas dos que nascem pobres em uma sociedade dominada por uma potência estrangeira. Mesmo sendo uma cruz desmistificada pelo materialismo e ateísmo de Saramago, ela não deixa de tocar os leitores da mesma maneira que o beijo de Jesus Cristo nos lábios do Inquisidor: José quis ajudar um vizinho e quando percebe que está perdido resigna-se com seu azar, assim como tantos homens do povo, desprotegidos e desamparados antes e depois dele, aceitaram seu destino infeliz nessa terra.

    Prezados leitores, é uma pena que José Saramago tenha escrito em português em uma época em que não havia grandes escritores de língua portuguesa para que ele pudesse ter sido reconhecido como Dostoiévski foi escrevendo em russo, mas acompanhado de Gogol, de Tolstói, de Turguêniev, de Tchekhov e de outros escritores que consolidaram o impacto universal da literatura russa. Partindo das suas origens campesinas e da sua formação marxista, o autor português, ao desconstruir a Sagrada Família no Evangelho de Jesus Cristo e a ideologia da Igreja no Memorial do Convento, consegue transcender suas próprias ideias, certas ou não, morais ou imorais, e nos mostrar o cerne da condição humana. Nesse sentido, ele chega ao mesmo lugar que Dostoiévski, o qual parte de suas convicções cristãs profundas, o que mostra a grandeza dos dois. Para quem nunca leu José Saramago, para ateus, católicos, protestantes, recomendo que o faça, pois todo grande artista é muito maior do que as próprias ideias que ele tenta expressar.

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