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O pequeno jardim de Epicuro

Posted by on 20/10/2021

A glória do estado ateniense tinha acabado, e a filosofia teve que enfrentar o que para os gregos era um divórcio sem precedentes entre a política e a ética. Ela tinha que encontrar um modo de vida que fosse ao mesmo tempo aceitável para a filosofia e compatível com a impotência política. Assim, ela concebeu seu problema não mais como o de construir um Estado justo, mas o de formar um indivíduo satisfeito e auto-suficiente.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, de Will Durant (1885-1981), historiador e filósofo americano

Não é possível viver de maneira prazerosa sem viver de maneira prudente, honrada e justa; nem viver de maneira prudente, honrada e justa sem viver de maneira prazerosa

Máxima atribuída a Epicuro (341-270 a.C.), filósofo nascido em Samos

Que o epicurismo tenha se tornado sinônimo de uma vida luxuosa deve-se ao fato de que Epicuro foi bastante vilificado pelos seus contemporâneos estoicos e por seus sucessores, que desprezavam o que lhes parecia uma visão grosseiramente materialista da doutrina epicurista. Isso é ainda mais enganador considerando a circunstância de que o círculo de Epicuro realmente levava uma vida frugal.

Trecho retirado do livro “Wisdom of the West” do matemático e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970)

    Prezados leitores, “The Life of Greece” descreve as transformações por que passam as cidades gregas devido ao domínio por elas exercido pelo reino da Macedônia, primeiramente por Felipe II (359 a.C.-336 a.C.) e depois por seu filho, Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.). Sem entrar nos detalhes dos motivos, o fato é que Atenas, a pioneira da democracia e da filosofia, deixa de ser o império marítimo que era, que ditava regras às outras cidades-Estado que tinham feito parte da Confederação de Delos, formada em 476 a.C. para enfrentar o império persa. No final das contas, a democracia ateniense havia falhado em garantir a prosperidade, a paz e a estabilidade e não restavam opções em termos de regimes políticos para serem testados: a grande ideia do governo pelos cidadãos reunidos na Ágora e escolhidos por sorteio para exercer cargo público tinha se exaurido. Tal desilusão teve reflexos na mentalidade dos intelectuais da época, como mostra Durant em seu livro. Um dos reflexos deste cair das nuvens é a corrente filosófica do epicurismo.

    Se Sócrates e Platão haviam se preocupado com a questão de como criar um Estado bom e justo, isso não é mais um problema para os filósofos da época helenista, inaugurada pelo breve reinado de Alexandre. As disputas políticas entre democratas e aristocratas, entre populistas e tiranos eram coisa do passado e não tinham levado a nada. Se o indivíduo não podia realizar-se como animal político, o que restava a ele? E com o questionamento da religião e das histórias sobre os Deuses por Sócrates, passando pelos sofistas e cínicos nos séculos V e IV a.C., como era possível estabelecer regras morais que não tivessem respaldo em um legislador sobrenatural que estabelecesse o que era virtude e o que era vício ou em um regime político que definisse o que era justo e o que era injusto?

    A saída para alguns filósofos foi adotar como foco não a busca pela verdade nem pela justiça, mas a busca da felicidade individual. Se não havia como fundar a moral em fontes externas, porque a religião tradicional e o regime político haviam sido desacreditados, então que ela fosse fundada no próprio homem enquanto indivíduo, enquanto ser que experimenta sensações a partir das emanações dos objetos do mundo material e que raciocina com base naquilo que os seus sentidos lhe apresentam do mundo exterior. Uma moral não transcendental, mas natural, sem grandes aspirações metafísicas sobre chegar ao Bem supremo, inatingível pelo homem, que nunca conseguirá sair do seu quadrado de experiências sensoriais.

    Essa moral natural conjuga o corpo e a alma do homem para estabelecer as regras do bem viver. A chave reside em tornar a virtude não um fim em si mesmo, algo a ser perseguido com paixão dogmática, mas um instrumento para a vida feliz. A vida feliz é aquela em que a moderação e a prudência dão o tom, de modo a evitar os extremos que causam o sofrimento e a dor. Conforme a máxima de Epicuro, o fundador dessa corrente filosófica, a razão e a emoção devem temperar-se mutuamente.

    Entregar-se à paixão e ao desejo é prejudicial porque uma vez satisfeitos eles levam ao entorpecimento da saciedade. Considerando que a saciedade tem curta duração, o indivíduo passa a sentir-se insatisfeito de novo e vai atrás de outros desejos, numa perseguição febril de um horizonte que foge sempre e que só causa perturbação na alma.

    O ideal assim é um prazer passivo, que não seja fruto do desejo, mas da contemplação sóbria por parte do indivíduo dotado de razão que decide o que evitar e o que escolher em prol da felicidade, isto é, da ausência de dor e de sofrimento, em prol da tranquilidade do corpo e do espírito. Nada de lascívia, de cupidez, de gulodice: como descreve Bertrand Russell em sua história da filosofia ocidental, a transformação do epicurismo em sinônimo de vida luxuosa é uma conspurcação do ideário de Epicuro, cuja moral, focada no indivíduo e não na comunidade, faz do homem em si e por si mesmo sua própria bússola, valendo-se de sua capacidade de raciocinar com base em suas experiências e de decidir que rumo tomar para evitar os perigos.

    Daí a imagem de jardineiro de Epicuro. Ele cuida do seu pequeno jardim individual, evita entrar em disputas políticas que dão em nada, evita engajar-se na vida de maneira muito ativa, para proteger-se contra as incertezas de um mundo exterior cujos fundamentos religiosos e políticos viraram pó. É uma boa receita a ser seguida por alguém que está protegido pela cerca do jardim e que consegue manter as condições objetivas da sua vida controladas, mas para quem é atingido pela pobreza, pelo infortúnio, pelo luto de maneira inapelável, ela não vale de nada pois não dá esperança, nem consolo quando as cercas do jardim são destruídas e as plantas pisoteadas. Não admira que o epicurismo, conforme informa Russell, tenha sido adotado pelas classes altas de Roma no início do Império. No entanto, conforme denunciou Herégias de Cirene, considerando que para a maior parte dos pobres mortais a vida tem mais dor que prazer, mais sofrimento do que alegria, levada às últimas consequência uma filosofia moral naturalista como o epicurismo tinha como consequência lógica o suicídio.

    Prezados leitores, nesses tempos turbulentos de nossa democracia tropical, em que as disputas se tornam cada vez mais acirradas, rasteiras e destituídas de qualquer senso do bem comum, feitas de intrigas, fofocas e disputas pelo poder pelos membros da mesma patota de donos das prebendas e sinecuras, não é tentador refugiar-se no jardim de Epicuro? Ou será que de nada adianta cultivar o jardim se ele está rodeado pelos hipopótamos?

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