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A democracia e a porta giratória

Posted by on 14/12/2021

É importante então entender que a democracia não é um pacto de silêncio, a democracia é um processo de efervescência da sociedade na busca da construção de um mundo justo, mais solidário, mais fraterno e mais humanista.

Trecho de fala de uma videoaula sobre a democracia lançada em 12 de dezembro pelo ex-presidente Lula juntamente com o presidente da Argentina, Alberto Fernandez e o ex-presidente uruguaio, Pepe Mujica.

Porta giratória é o movimento de pessoas de uma função de legislador e regulador de um lado para a de membros do segmento econômico afetado pela legislação e pela regulamentação de outro.

Trecho do verbete “Porta giratória” retirado da enciclopédia eletrônica Wikipedia

    Prezados leitores, já ouviram falar da expressão “porta giratória” utilizada para fazer referência às relações próximas entre os órgãos reguladores e as indústrias objeto da regulação? De acordo com essa concepção, há um troca-troca sem fim entre as pessoas que trabalham nas agências governamentais encarregadas de elaborar normas reguladoras de certas atividades econômicas e as empresas cujas operações submetem-se a tais normas.

    De um lado, as pessoas que trabalham para o governo conseguem emprego na iniciativa privada porque muitas vezes elas têm informações privilegiadas sobre o que ocorre dentro do governo em termos do conteúdo das regulamentações que estão sendo elaboradas e podem acionar seus amigos que continuam sendo funcionários públicos para influenciá-los a elaborar normas que sirvam aos interesses da empresa onde elas vão trabalhar.

    De outro lado, as pessoas que trabalham em empresas reguladas muitas vezes são contratadas pelo governo porque têm experiência de como funciona aquele segmento econômico e podem funcionar como elo de ligação entre o governante de plantão, que precisa de doações para a próxima campanha eleitoral, e a iniciativa privada, que precisa que a mão da autoridade política de plantão não seja muito pesada de modo a não tornar a atividade econômica onerosa demais pela imposição de múltiplas obrigações.

    No final das contas, tem-se o que em inglês se chama “regulatory capture”, isto é, as agências que supostamente deveriam criar um ambiente de negócios em que o consumidor fosse protegido dos excessos das empresas na busca pelo lucro transformam-se em meras chanceladoras daquilo que a indústria quer ou tolera em termos de regulamentação. E tal fenômeno traz em seu bojo uma desigualdade brutal entre aquilo que o consumidor é levado a esperar quando adquire um produto e o que de fato ele obtém. Vou dar-lhes um exemplo concreto falando de uma experiência recente por mim vivida. Meu objetivo é que ela sirva de alerta aos que me leem.

    Precisando muito de dinheiro para cobrir certas despesas inadiáveis e não tendo de outro lugar para tirar, decidi valer-me de um seguro de vida cuja apólice adquiri há mais de dez anos. De acordo com as informações que os corretores me deram à época, 20% do valor pago seria resgatável como capital de sobrevivência. Pois bem, fui atrás dos termos e condições da apólice para saber como eu conseguiria exercer o direito a tal capital. E onde estão os Termos e Condições? Não encontrei no site da seguradora, não encontrei no site da SUSEP, no qual teoricamente o cidadão-consumidor pode obter informações sobre todos os produtos de seguro aprovados pela agência reguladora para comercialização, mediante a inserção do número do produto. Falando com a corretora que atua na agência bancária em que tenho conta, ela me disse que era só solicitar pelo telefone os Termos e Condições. Ligando na seguradora protocolei um pedido, mas nunca obtive resposta nenhuma.

    Mesmo não sabendo dos detalhes das condições de exercício do direito ao capital de sobrevivência, resolvi tentar abrir uma solicitação de sinistro, usando o telefone que me foi dado pela corretora. Era preciso acessar um site, abrir o chamado, preencher a documentação, digitalizá-la, carregá-la no site. Preparei meu dossiê e quando tentei inseri-los no chamado, o site não os carregava. Tentei isso por dois dias, sem sucesso. Por que será que um site de regulação de sinistros funciona tão mal? Não desisti, porque precisava do dinheiro. Obtive um e-mail de um funcionário e para ele mandei a documentação. Para minha felicidade, ele acusou recebimento. Então imaginei que era deitar em berço esplêndido e aguardar os trinta dias necessários para o processamento. Assim o fiz, sonhando com meu dindin na conta, para saldar minhas dívidas. De vez em quando eu acessava o site, mas lá eu só via quatro bolinhas, três ticadas de verde, sinalizando que estava tudo OK e a quarta em vermelho. Achei que eu estava na boca do gol, só faltando dar a cabeçada…

    Hoje pela manhã resolvi ligar para a seguradora para saber porque decorridos já 30 dias meu capital de sobrevivência ainda era uma nuvem virtual. Qual foi minha surpresa e meu choque quando o operador de telemarketing disse que meu chamado havia sido fechado porque não era a maneira correta de proceder, apesar de eu ter pedido orientações à corretora que atua na agência bancária para fazê-lo. Foi então que começou minha saga da busca da verdade, durante a qual eu me transformei em uma bola que cada atendente do SAC passava displicente para outro atendente, em outro telefone e outra opção. Meu desespero foi tanto que liguei na minha agência e pedi ajuda ao gerente e à corretora. Eles só acharam outros telefones e opções diferentes daquelas que eu havia tentado e me ofereceram: eu que me virasse, porque resolver meu problema não era prioridade. Estava tentando usufruir de um direito, não estava tentando comprar nada, então eu me transformei aos olhos deles em um ser descartável.

    Depois de uma breve pausa para o almoço, em que engoli a comida de preocupação, tentei novamente caminhar no Labirinto do Minotauro, digo, da Seguradora e seu serviço de telemarketing passivo. Finalmente consegui falar com uma senhorita que tinha um pouco mais de conhecimento do que a média dos funcionários e me explicou o que ocorrera: o chamado foi encerrado porque minha apólice havia sido renovada em outubro e eu não tenho mais direito ao capital de sobrevivência, só à reserva matemática, que obviamente é menor. Premida pela necessidade do dinheiro, optei em aceitar receber a reserva, porque não posso esperar mais um ano.

    Assim é na prática a relação do humilde consumidor com as empresas supostamente reguladas pelos órgãos governamentais. Caímos no buraco negro do telemarketing, no qual todos dão respostas prontas, ninguém se responsabiliza por erros de informação, ninguém tem autonomia ou conhecimento para lidar com situações que fogem do Manual de Procedimentos Operacionais Padrão. Recorrer a quem? Ao PROCON, que já recebeu n reclamações do mesmo tipo? À SUSEP, em cujo site não consegui nem achar detalhes sobre a apólice que eu havia adquirido? À Justiça, que demora em média dois anos para processar uma demanda em cada uma de suas instâncias? Como dizia um professor meu na faculdade de Direito, as grandes empresas – operadoras de telefonia, seguradoras, bancos – são clientes contumazes do Judiciário. Um processo a mais ou a menos não faz diferença para elas, mas para aquele que busca seus direitos é uma aporrinhação em perda de tempo e de dinheiro e em termos de quantos sapos são engolidos.

    Prezados leitores, para que a democracia não seja um pacto de silêncio, mas uma efervescência, conforme preconiza Lula com seus coleguinhas latino-americanos, seria preciso que em nossa vida cotidiana tivéssemos a oportunidade de exercer pequenos direitos sem delongas ou tergiversações, sem que tenhamos que pagar pela ignorância e incompetência de empresas que agem muitas vezes de má-fé para vencer pelo cansaço o cliente que exige seus direitos pelos quais ele pagou. Seria preciso que em nossa vida cotidiana nossas queixas e preocupações pudessem ser ouvidas e não simplesmente que fôssemos submetidos a gravações automáticas, a opções infinitas no telefone que não levam a lugar nenhum.

    Garantir na prática os direitos do consumidor frente às empresas que agem com desfaçatez porque sabem que quem as regulam trabalharam ou trabalharão para elas faria muito para que nós brasileiros acreditássemos em nossas instituições, porque nossas relações de consumo afetam nossa vida todos os dias, de manhã à noite. Oxalá que nas próximas eleições, para além das belas e abstratas palavras sobre democracia, justiça e humanidade, os candidatos apresentem planos concretos para resolver o problema das portas giratórias.

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