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O Rufar dos Tambores

Posted by on 01/03/2022

A moralidade é estritamente tribal. […] Talvez, no entanto, os gregos sejam diferentes de nós não com relação à conduta, mas à transparência; nossa maior delicadeza faz com que consideremos ofensivo pregar aquilo que praticamos. O costume e a religião entre os gregos coíbem muito pouco o vitorioso na guerra. É prática comum, mesmo em guerras civis, o saque da cidade conquistada, a matança dos feridos, o assassinato ou a escravização de todos os prisioneiros pelos quais não foi pago resgate e de todos os não combatentes capturados, a queima das casas, das árvores frutíferas, das plantações, o extermínio dos rebanhos e a destruição das sementes para inviabilizar futuras plantações.

Trecho retirado do livro “The Life of Greece”, do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) que explica a concepção de moralidade e de lei dos gregos exemplificando pelo modo como atuavam nas guerras

[…] a propaganda de guerra estimula os aspectos mais poderosos da nossa psiquê, nosso subconsciente, nossos impulsos instintivos. Nos faz propositalmente abandonar a razão, provoca um aumento do tribalismo, do chauvinismo, do sentimento de superioridade moral e da emotividade: todos constituindo motivações poderosas embutidas em nós ao longo de milênios de evolução.

Trecho retirado do artigo “A propaganda de guerra relativa à Ucrânia está se tornando mais militarista, autoritária e irresponsável” escrito pelo jornalista Glenn Greenwald em 27 de fevereiro

O heróico comediante contra o covarde ex-agente da KGB

Título de um artigo publicado em O Globo em 27 de fevereiro em que o jornalista Guga Chacra compara a atuação de Vladimir Putin, o presidente da Rússia, com a de Volodymyr Zelensky, o presidente da Ucrânia

    Prezados leitores, o rufar dos tambores de guerra está no ar. A Rússia comandada por Vladimir Putin invadiu o país que lhe faz fronteira, a Ucrânia. Como retaliação por parte dos países do bloco ocidental, a Rússia foi banida do sistema SWIFT de pagamentos internacionais e da Copa do Mundo de futebol a ser realizada no Qatar em dezembro deste ano. Suas reservas internacionais em euros e dólares foram confiscadas. Não é meu objetivo aqui tecer uma argumentação defendendo um ou outro lado, mesmo porque não tenho a ilusão de convencer ninguém de nada. Apenas quero apontar certas semelhanças e diferenças entre aquilo que fazemos em pleno século XXI e o que faziam os gregos cinco séculos antes da era cristã.

    Em primeiro lugar, somos mais hipócritas em relação à nossa atuação do que eram os gregos, talvez porque tenhamos chegado a uma sofisticação inigualável em termos de racionalizações. Como mostra Will Durant em seu capítulo sobre o modo franco como os atenienses concebiam a guerra, os gregos tinham consciência de que a lei e a justiça se aplicavam somente ao seu grupo. Contra os inimigos valia a força bruta, a imposição da sua vontade por todos os meios necessários de modo a obter a subjugação do outro e obter os espólios de guerra. Nesse sentido, a violência, tal como a descrita por Will Durant – a política de terra arrasada que era prática comum – era o meio para a conquista material. O poder fazia a lei e a lei deveria ser solenemente ignorada quando era um obstáculo à conquista: as tréguas eram frequentemente desrespeitadas, as promessas que uma cidade fazia à outra quebradas, os enviados diplomáticos assassinados. Em suma, a noção de Direito Internacional, de Direito da Guerra, de direitos dos prisioneiros de guerra eram totalmente estranhas aos gregos.

    Quem há de negar que neste sentido evoluímos? Afinal, temos a Organização das Nações Unidas. É verdade que o poder de veto dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU muitas vezes permite que as potências exerçam esse direito para impedir alguma sanção ou colocar algum obstáculo jurídico contra o seu comportamento bélico. Assim ocorreu com os Estados Unidos quando invadiu o Iraque em 2003 e assim está ocorrendo em relação à invasão da Rússia pela Ucrânia: não houve consenso no Conselho de Segurança tanto no passado como no presente devido ao equilíbrio de forças entre os membros. Sob essa perspectiva, o poder está paralisando o Direito, tal como ocorria na Grécia. Por outro lado, é sempre possível convocar uma Assembleia Geral da ONU, em que todos os países possam ser escutados a respeito da solidez da justificativa que está sendo proposta para a guerra. Desse modo, alguma condenação o país invasor sofrerá, o que no mínimo tira a credibilidade da ação militar.

    No entanto, conforme explica Glenn Greenwald em seu artigo, disponível em greenwald.substack.com, há atualmente um consenso que se estabeleceu rapidamente e que pode ser perigoso, por impedir uma reflexão desassombrada sobre o que fazer ante o fato consumado da invasão não provocada pela Rússia da Ucrânia. O consenso, estabelecido na mídia e no establishment político dos Estados Unidos, gira em torno de uma visão maniqueísta dos acontecimentos que estão se desenrolando no Leste Europeu. Vladimir Putin é o homem mal, irracional, louco, o novo Hitler, que atacou gratuitamente um país indefeso. Quem quer que discorde dessa visão é um traidor da pátria, dos valores da liberdade representados pelos Estados Unidos e por isso o país tem a obrigação moral de defender a Ucrânia democrática contra o tirano Putin.

    Greenwald considera isso perigoso porque independentemente da escolha moral que cada indivíduo fizer, seja pelos valores propostos pela Rússia de Putin, seja pelos valores propostos pelo bloco ocidental capitaneado pelos Estados Unidos, essa certeza sobre quem está certo no embate entre o Bem e o Mal obscurece nossa capacidade de pensar. Unidos em um bloco homogêneo em torno do inimigo comum, teremos motivação para enfrentá-lo, mas não teremos lucidez para escolher o melhor caminho a tomar. É producente tornar a Rússia um pária internacional? Resolveremos a situação impondo sanções econômicas que prejudicarão a população de todos os países em termos de alta de preços de alimentos e energia (afinal a Rússia e Ucrânia juntas respondem por 25% das exportações mundiais de trigo e a Rússia é grande fornecedora de gás à Europa)? É justo impor os maiores sacrifícios aos cidadãos comuns que não participam das disputas de poder entre as grandes potências geopolíticas do século XXI? Não é melhor que a negociação diplomática entre em cena e que os dois lados de fato façam concessões recíprocas e cumpram o que prometerem?

    Nesse ambiente de rufar dos tambores, a onipresença das mídias sociais atiça o fogo das paixões. A inteligência artificial embutida em plataformas sediadas nos Estados Unidos, como o Facebook e o Twitter, tem uma capacidade de processamento de informações que lhe permite determinar nossas predileções políticas e assim oferecer a nós, pela aplicação de algoritmos, aquilo que queremos ouvir e ler, i.e. aquilo que reforça nossas convicções, o chamado viés da confirmação. O discurso único em torno da demonização do líder russo e da idealização do líder ucraniano fica assim ainda mais consolidado, em todos os países influenciados pela mídia americana, vide a manchete que abre este primeiro artigo escrita por um jornalista brasileiro em um de nossos principais veículos de informação.

    Prezados leitores, 2022 abre-se como um ano turbulento, em que comparativamente aos gregos de 2500 anos atrás temos uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que temos um Direito Internacional codificado, entre outros documentos, na Carta das Nações Unidas de 1945. Por outro lado, temos veículos como as mídias sociais que permitem o estabelecimento rápido de consensos eficientes que bloqueiam qualquer opinião contrária. Resta esperarmos que nossos pontos fortes sobressaiam e que não acabemos como os gregos destruindo-nos mutuamente em uma versão global da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

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