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De que lado da dialética ficaremos?

Posted by on 21/03/2022

As regularidades e recorrências do tipo que normalmente se manifestam no reino da natureza são estranhas, sustentava Hegel, à esfera da mente e do espírito, que se caracterizava ao invés disso por implicar um impulso constante em direção à autotranscendência e à remoção das limitações sobre o pensamento e a ação. O homem não deveria ser concebido de acordo com os modelos mecanicistas do materialismo do século 18; ele era essencialmente livre, mas a liberdade que constituía sua natureza somente poderia ser atingida por meio de um processo de luta e de superação de obstáculos que eram eles mesmos a expressão da própria atividade humana.

Trecho retirado do verbete “Filosofia da História” da 15ª (1974) edição da Enciclopédia Britânica, sobre as ideias do filósofo idealista alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831)

 

Toda a cadeia de produção, distribuição de produtos e logística, toda essa geografia de comércio será afetada. Estamos presenciando um princípio de fim da globalização como conhecemos”, afirmou a especialista em comércio internacional e professora adjunta de Direito Internacional da American University, Renata Amaral. “Como o Brasil vai continuar se dando bem com EUA, Rússia e China? A questão de escolha de lado vai ficar muito mais evidente daqui para a frente, e isso vai se refletir nas decisões de investimento futuro das empresas.

Trecho retirado do artigo “Pandemia e guerra põem a globalização em xeque” publicado no jornal O Estado de São Paulo em 20 de março

    Prezados leitores, na semana passada eu tratei do sistema de crédito social da China como uma aplicação direta da filosofia de Confúcio e o fiz com o intuito de ter uma ideia do que pode nos esperar se houver uma movimentação das placas tectônicas na geopolítica mundial de forma que a ordem mundial vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial e capitaneada pelos Estados Unidos seja substituída por outro sistema organizado sob princípios da cultura chinesa. Nesta semana, meu humilde objetivo é o de explorar como um novo estado de coisas pode surgir à luz dos ensinamentos de Hegel, o inventor da dialética, sobre o modo como a História se processa, além de algumas das características econômicas dele.

    Conforme o trecho que abre este artigo, a filosofia da história hegeliana colocava-se como contraponto ao materialismo, segundo o qual os fenômenos do mundo visível são resultado das interações entre partículas de matéria, as quais não têm nem inteligência e nem propósito, comportando-se como bolas que se chocam. Para Hegel, o homem é o sujeito da História, atua no processo histórico, toma decisões de acordo com o ideal que ele quer ver concretizado. Ao enfrentar obstáculos à concretização da sua ideia, o homem atua para superá-los e é por haver uma luta entre o que o homem quer e as condições materiais do momento que não se pode dizer que os acontecimentos históricos se desenrolam por meio de uma série de transições imperceptíveis. Ao contrário, eles são fruto do esforço e da ação humanos.

    Uma vez tendo surgido um novo modo de vida na sociedade a partir da atuação consciente do homem, suas potencialidades se concretizam na prática, e com o tempo o mesmo homem que por suas ações viabilizou a existência dessa sociedade específica percebe que ela é inadequada, que ela tem falhas. As instituições que antes eram aceitas de maneira inquestionável passam a ser vistas como entraves ao desenvolvimento pleno das aspirações do homem. Nesse sentido, cada fase do processo histórico contém os germes de sua própria destruição, a qual ocorrerá quando uma nova sociedade for constituída a partir da luta do homem para superar um estado de coisas que não mais atende seus interesses e anseios.

    Eis o processo dialético em ação, fruto da vontade dos sujeitos históricos atuando para dar à luz a um determinado estado de coisas, de modo que a tese proposta na mente e concretizada na prática gera em si mesma sua própria antítese e no futuro uma síntese é elaborada a partir do conflito. Sob essa perspectiva a História não é aleatória, cega, fruto do acaso, de uma confluência imprevisível de fatores que estão presentes simultaneamente em determinado momento no tempo.

    À luz dessa concepção de Hegel da História  como vontade presentificada, o que vemos ocorrer hoje é o parto de uma nova sociedade, diferente da sociedade globalizada baseada no princípio de que o comércio internacional, guiado pela atuação irrestrita das forças competitivas do mercado, resultará no melhor resultado possível para todos. Nesta antiga ordem que vigeu mais ou menos desde 1945 e à qual os países do Leste Europeu aderiram após a queda do Muro de Berlim, em 1989, alguns países se especializaram na produção de bens manufaturados, outros na prestação de serviços, outros na produção de commodities agrícolas, outros de commodities energéticas, e ainda outros de commodities minerais. Tudo funcionou muito bem quando as necessidades complementares dos países podiam ser facilmente atendidas pelas cadeias de suprimento organizadas em escala mundial e pela comunicação instantânea viabilizada pela internet.

    E de repente surge uma pandemia em novembro de 2019 que mostra aos atores da globalização as falhas no processo: em um momento de emergência médica, descobriu-se que itens fundamentais, como máscaras, equipamentos de proteção individual e respiradouros eram em grande parte fabricados na China, a qual naturalmente priorizou o atendimento de suas próprias necessidades internas, deixando seus parceiros comerciais desamparados quando tais produtos faziam a diferença entre a vida e a morte. Ainda hoje, mais de dois anos depois do início do surto de covid-19, se o pior já passou em termos de menos necessidade de internações em UTIs por causa do vírus, o fato é que o fornecimento de chips pela China, que em 2018 era o maior exportador mundial, com receitas de mais 300 bilhões de dólares ao ano, ainda não foi regularizado, o que afeta a produção de veículos, de eletrodomésticos e de equipamentos eletrônicos.

    Tais falhas ficaram ainda mais escancaradas em 24 de fevereiro de 2022, data do início da operação militar da Rússia na Ucrânia. O bloco liderados pelos EUA impôs sanções econômicas, que incluíram o confisco das reservas internacionais em moedas e em ouro que estavam depositadas fora da Rússia nos países ocidentais e o encerramento das operações no país de pelo menos 400 empresas desde o início da guerra. Como retaliação, a Rússia criou uma lista negra de países com os quais ela deixará de manter relações comerciais normais, incluindo a venda de fertilizantes, de trigo, de minerais estratégicos como o níquel, utilizado em baterias elétricas e as terras-raras utilizadas para a fabricação de semicondutores e baterias solares, para não falar do gás e do petróleo. Em suma, as cadeias globais de suprimento que fizeram a riqueza da economia mundial por meio da especialização que gerava eficiências de um lado e causava dependências perigosas em momentos de crise do outro, estão pouco a pouco se desfazendo.

    Face a essa dupla disrupção do comércio internacional pela pandemia e pela guerra, como os países responderão? Investirão recursos para tornar-se autarquias econômicas, produzindo tudo de que necessitam? Será que isso é viável para todos os países? Ou será que o caminho será escolher um lado e estabelecer relações comerciais unicamente naquele grupo para adquirir os produtos nos quais o país não goza de vantagem competitiva e por isso faz mais sentido econômico que sejam importados? De acordo com a opinião da especialista citada na abertura deste artigo, será inevitável que o Brasil faça sua própria escolha, seja pelos países do bloco ocidental, tendo à frente os Estados Unidos, seja pelos países do novo bloco da Ásia, a ser formado em torno da China e da Rússia.

    Se quisermos seguir as lições de Hegel, nós brasileiros teremos que tomar uma decisão sobre aquilo que queremos para nós e agirmos no mundo real para concretizar esse ideal. De que lado da dialética ficaremos? Será que atuaremos como senhores da nossa própria vontade e artífices da nossa própria História ou seremos simplesmente bolas que movem daqui para lá no xadrez da geopolítica internacional impulsionadas pelos reis, bispos e rainhas que nos empurram ao sabor das suas próprias decisões? Aguardemos.

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