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A Mãe Coragem norueguesa

Posted by on 23/05/2022

O primeiro-ministro da Polônia conclamou a Noruega a compartilhar os enormes lucros que o país tem obtido das suas vendas de petróleo e gás como resultado da guerra na Ucrânia. Falando em um encontro de jovens em Varsóvia, Mateusz Morawiecki observou que os lucros obtidos pela Noruega pela venda de petróleo e gás neste ano serão de 100 bilhões de euros a mais do que em anos recentes.

Trecho retirado de um artigo escrito pelo jornalista Daniel Tilles, editor-chefe de Notes from Poland e publicado em 22 de maio de 2022

Brecht define o que uma apresentação de “Mãe Coragem e seus Filhos” deve evidenciar: que não são os humildes que fazem os grandes negócios numa guerra. Que a guerra, essa outra maneira de continuar o comércio, faz de toda virtude um poder de morte que se volta exatamente contra quem o detém.

Trecho retirado do texto Mãe Coragem escrito por Fernando Peixoto para o catálogo da produção da peça do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) encenada no Teatro SESC Anchieta em 2002

    Prezados leitores, eu cultivo o hábito de guardar catálogos de todas as peças e exposições a que eu assisti ao longo da minha vida. Para falar a verdade, quase nunca leio os textos incluídos nesses materiais, mas sempre os levo para casa para lembrar-me do meu percurso cultural. A guerra na Ucrânia, que se desenrola há quase três meses, sem perspectiva de fim à vista, lembrou-me da Mãe Coragem interpretada pela atriz Maria Alice Vergueiro, há exatos 20 anos, em maio de 2002. Explicarei o porquê da associação.

    A Mãe Coragem brechtiana é uma mulher de nome Anna Fierling, que atravessa a Guerra dos 30 anos (1618-1648), puxando sua carroça e vendendo aos soldados o que nela contém. Para quem não sabe, essa foi a primeira grande guerra europeia, opondo católicos a protestantes e acabando por esfacelar o Sacro Império Romano Germânico, constituído à época de 300 territórios autônomos.  A Paz de Vestfália, que colocou fim ao conflito, consagrou um princípio de direito internacional segundo o qual cada estado tem soberania sobre seu próprio território, e tem o poder de determinar o tipo de regime de governo e de religião que quer estabelecer. A noção de ordem internacional formada por Estados independentes, que se relacionam entre si em pé de igualdade jurídica em termos de soberania mutuamente reconhecida, tem validade até hoje, ao menos na teoria.

    Bertold Brecht constrói uma personagem equívoca, no sentido de ser repleta de ambiguidades morais. Anna Fierling ganha sua vida lucrando com o negócio da guerra, mas ao mesmo tempo que se aproveita ela é própria vítima, pois perde seus três filhos: os dois homens morrem como combatentes e a filha muda morre quando fala pela única vez através de um tambor, avisando que uma pequena cidade está para ser invadida. Com seu último rebento morto, a Mãe Coragem fica sozinha. Isso não a leva a indignar-se, a tirar alguma lição moral da guerra: a última cena da peça é a de Anna retomando sua caminhada e puxando sua carroça de comerciante.

    A indiferença da personagem principal da peça de Brecht serve para mostrar ao espectador a ambiguidade da própria guerra: para uns a guerra é justa, para outros é injusta. Aquele que luta heroicamente defendendo sua causa provoca tanta destruição quanto o lado oposto. A posição vacilante da Mãe Coragem no século XVII, que com seu humilde apoio logístico aos esforços da soldadesca permite que a engrenagem bélica continue funcionando, mas ao mesmo tempo vê sua família dizimada, é ilustrada hoje pela Noruega, que conforme mostra o trecho que abre este artigo, lucrará 100 bilhões de euros a mais só neste ano, com a disparada dos preços do petróleo e do gás causada pelo boicote imposto à Rússia pelas potências ocidentais por sua invasão da Ucrânia.

    A Noruega é um país de 5 milhões e meio de habitantes. De acordo com o CIA World Factbook, a expectativa de vida dos homens é de 80 anos e a das mulheres é de 84 anos. O PIB per capita é de 63.600 dólares, e para tornar as coisas ainda melhores, o governo do país criou um fundo soberano para poupar os lucros auferidos com a exploração de petróleo e gás, que são recursos finitos, e assim garantir a segurança material das futuras gerações de noruegueses.

    Em 2017 esse fundo já tinha um trilhão de dólares aos quais serão adicionados os 100 bilhões de euros a mais só de 2022. Como a Rússia agora exige que as compras de seu petróleo e gás sejam liquidadas em rublos e os países europeus mostram-se pouco dispostos a aceitar essa condição, a Noruega é a tábua de salvação dos países europeus que dependem da importação de energia para sustentar sua economia. Então, enquanto as relações com a Rússia forem difíceis ou inexistentes, o que deve se prolongar por vários anos, o país tende a beneficiar-se por ter excedentes para vender. Em suma, a Noruega é uma típica Mãe Coragem que vive da desgraça alheia em plena guerra e no entanto, há um outro lado.

    Diferentemente de Anna Fierling que dá sua cota de sacrifícios sem ser consultada se aceita fazê-lo, perdendo três filhos para a guerra, a Noruega, de acordo com o artigo de Daniel Tilles, por meio do seu Partido Verde, propôs uma expiação voluntária de suas culpas pela alocação de parte dos lucros com os preços do petróleo e gás nas alturas a um fundo para prestar ajuda humanitária às vítimas da guerra na Ucrânia e ajudar na reconstrução da infraestrutura do país. Será que a Noruega realmente fará uma lavagem do seu dinheiro “sujo”, investindo em projetos moralmente corretos? E será que o país, que figura na quarta colocação do Índice de Corrupção da Transparência Internacional e, portanto, é um dos menos corruptos no mundo, se dará por satisfeito em enviar o dinheiro à Ucrânia, ou fará questão de fiscalizar sua aplicação, considerando que o país invadido pelas tropas russas em 24 de fevereiro está na 122ª posição neste mesmo ranking, que reúne 180 países? Será que no final das contas, por mais que a Noruega tente honestamente limpar sua barra ajudando a minorar os estragos causados pela guerra, não teria sido melhor ela se recusar a vender petróleo e gás aos países europeus para obrigá-los, sob a pressão da falta de energia, a entrar em acordo com a Rússia em relação à não entrada da Ucrânia na órbita da OTAN, que era o que o presidente da Rússia, Vladimir Putin e seu Ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, pediam? Um acordo desse tipo não teria evitado a guerra? Ou será que a Rússia apenas achou uma justificativa para dar ares de guerra justa a uma ofensiva de conquista de território?

    Prezados leitores, grande dramaturgo que era, Bertold Brecht criou uma personagem cuja trajetória individual ilustra a violência da guerra, suas realidades econômicas, as mistificações que se constroem em torno dela e acaba mostrando sua verdadeira face. No final das contas, as Mães-Coragem e as Noruegas acabam assumindo posições que do ponto de vista moral são uma mistura do bem e do mal, por mais que sejam humildes participantes num caso ou protagonistas bem intencionadas no outro. Vejamos até quando e a que preço a Noruega continuará puxando sua carroça pelos campos europeus em pleno século XXI.

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