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A revolução dos astros e dos filósofos

Posted by on 02/08/2022

Se a consciência da existência de anomalias desempenha um papel na emergência de novos tipos de fenômenos, não deveria ser surpresa para ninguém que uma conscientização similar mas mais profunda é um pré-requisito para todas as mudanças aceitáveis na teoria. […] a consciência da anomalia havia durado tanto tempo e havia penetrado de maneira tão profunda que os campos por ela afetados podem ser descritos de maneira apropriada como estando em um estado de crise crescente. Pelo fato de exigir a destruição de paradigmas em larga escala e grandes mudanças nos problemas e nas técnicas da ciência normal, a emergência de novas teorias normalmente é precedida por um período de grande insegurança profissional.

Trecho retirado do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996)

Porque é a tarefa do astrônomo contar a história dos movimentos celestes por meio do estudo especializado e cuidadoso. Depois ele deve conceber e elaborar as causas desses movimentos ou hipóteses sobre eles. Pelo fato de ele não poder de jeito nenhum chegar às verdadeiras causas, ele adotará quaisquer suposições que permitam que movimentos sejam calculados de maneira correta de acordo com os princípios da geometria no futuro e no passado. […] Porque essas hipóteses não precisam ser verdadeiras nem mesmo prováveis. Ao contrário, caso elas proporcionem um cálculo consistente com as observações, isso já é suficiente.

Trecho retirado do prefácio da obra De Revolutionibus do astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543)

A definição da ciência é incompatível com a pretensão de autoridade da ciência. Se a ciência é uma atividade continuamente autocrítica, ela não pode proclamar nada como verdade definitiva.

Trecho retirado do áudio denominado “Você acredita na opinião da ciência”, gravado por Olavo de Carvalho (1947-2022), escritor e professor de filosofia brasileiro

    Prezados leitores, perdoem-me a menção a Olavo de Carvalho como professor de filosofia, pois bem sei que isso fere a sensibilidades de muitos. Considerado o guru intelectual de Jair Bolsonaro, Olavo era considerado um negacionista, por “não acreditar no aquecimento global, mesmo com todas as evidências científicas”, como afirmou a revista VEJA no seu obituário publicado em 29 de janeiro de 2022. Meu objetivo aqui não é emitir um julgamento sobre o pensamento do “autoproclamado filósofo”, mesmo porque nunca li nada do que ele escreveu.

   No entanto, como eu me incomodo com esses epítetos que são usados a torto e a direito para estigmatizar as pessoas, e negacionista é um deles, eu quis fazer uma investigação sobre a opinião que Olavo tinha da ciência e para isso eu ouvi um áudio no YouTube em que ele fala a respeito da natureza do conhecimento científico. E para julgar se a opinião dele é negacionista ou não, isto é, se ele é anticiência ou não, como seus detratores o descrevem, eu fiz uso da concepção de ciência que surge da leitura do livro de Thomas Kuhn, que abre este artigo.

    Para o físico e filósofo americano, a ciência se desenvolve em algumas etapas: na primeira etapa são estabelecidos os paradigmas, que são as fundações da atividade, os pressupostos sem os quais nada é possível ser colocado em prática: o modo de agir e de trabalhar, certas concepções sobre como as coisas funcionam, as questões a serem respondidas, como fazer experimentos, como pensar o mundo. Tais paradigmas são mais implícitos do que explícitos, sendo compartilhados pela comunidade. Uma vez havendo a consolidação desses paradigmas, a segunda fase, a da ciência normal, pode ocorrer: a ciência normal é aquela praticada pelo profissional que, de posse das técnicas e das teorias amplamente aceitas, gera resultados, seja confirmando as teorias e respondendo às questões propostas ou reformulando as teorias de modo que elas possam continuar tendo poder de explicação e de previsão. Na prática da ciência, a teoria e a prática se confundem: quando o cientista encontra elementos que fogem da ordem que ele presume teoricamente, seus paradigmas teóricos lhe permitem refinar as técnicas de observação e com observações mais precisas, o cientista consegue elaborar teorias mais abrangentes, calibrando os paradigmas que são a base do seu trabalho.

    Na terceira fase há uma quebra no círculo virtuoso pelo qual a teoria e a prática se alimentam mutuamente: a prática começa a gerar resultados que não podem ser compatibilizados de maneira nenhuma com os paradigmas vigentes, surgindo as anomalias. Com o tempo as anomalias se tornam tantas e tão profundas que os cientistas sabem que há algo tremendamente errado com as teorias e elas perdem a capacidade de previsão: não é mais uma questão simplesmente de novos fenômenos inesperados, mas de inconsistências tão profundas com a teoria vigente que esta deixa de ser útil, pois já passou do ponto em que uma pequena correção ou ajuste seriam suficientes para que ela desse conta das descobertas. É o tempo da crise: é unânime a percepção de que os antigos paradigmas precisam ser abandonados porque eles não trarão nenhum fruto, mas ao mesmo tempo não se chegou ao estabelecimento de novas fundações para o empreendimento científico. Somente quando isso ocorrer é que os cientistas poderão a voltar a praticas a ciência normal, que consegue explicar o passado e prever o futuro num todo consistente.

    Kuhn exemplifica esse processo explicando, dentre outras crises na história da ciência, aquela da concepção geocêntrica do sistema solar, que foi elaborada por Ptolomeu, um astrônomo greco-egípcio que viveu no segundo século a.C., presumindo que o Sol e os outros planetas giravam em torno da Terra, descrevendo órbitas circulares. Houve astrônomos gregos, dentre eles Aristarco de Samos (280-264 a.C.), que aventaram a ideia de que era a Terra que girava em torno do Sol, mas naquela época as observações disponíveis e a predileção dos gregos pelos círculos faziam com que a teoria geocêntrica fosse mais conveniente porque se coadunavam melhor com os dados até então coletados e não precisavam pressupor uma órbita elíptica da Terra em torno do Sol, como a teoria heliocêntrica exigia.

    E assim o geocentrismo dominou as mentes por mais de 1.500 anos até que no século XV a crise era evidente. A necessidade de ajustes e correções na teoria de Ptolomeu, em vista das observações acumuladas, haviam-na transformado em um monstro disforme, cheio de remendos e exceções, que precisava ser abatido, pois causava mais mal do que bem, impedindo o progresso na explicação do Universo. A revolução de Copérnico estabeleceu um novo paradigma, mas no próprio prefácio ao De Revolutionibus que abre este artigo, o autor não pretende ter descoberto as causas verdadeiras do movimento dos astros. A teoria heliocêntrica é melhor não por ser mais verdadeira e nem mesmo por ser mais provável, mas porque faz cálculos melhores que a teoria geocêntrica, permitindo encaixar os dados disponíveis num todo consistente e fazer previsões sobre o futuro, dando assim aos cientistas um mapa seguro sobre como fazer experimentações e chegar à descoberta de novos fenômenos que ilustrarão e enriquecerão a teoria.

    À luz  das explicações de Kuhn sobre como a ciência é praticada e da modéstia com que Copérnico apresenta sua teoria heliocêntrica,  será que a afirmação de Olavo de Carvalho de que a ciência não pode se proclamar como verdade definitiva é descabida? Certamente que não, e ele toca num ponto importante a respeito daqueles que invocam a ciência como argumento de autoridade, e portanto, inquestionável, pois a própria natureza da ciência requer um desafio constante à autoridade. Talvez o guru de Bolsonaro peque ao enfatizar demais o desacordo entre os cientistas quando menciona em seu áudio um livro de autoria da historiadora da ciência Milena Wazeck, que relaciona todos os ataques que eram feitos à Teoria da Relatividade até 1940. Aos mais desavisados, isso pode ser evidência de que a ciência é uma disputa sem fim entre teorias. No entanto, a aplicação dos conceitos de Kuhn nos permite encaixar esses desafios aos postulados de Albert Einstein (1879-1955) como parte do processo de elaboração e consolidação de novos paradigmas. Uma vez a Teoria da Relatividade tendo começado a produzir resultados, na forma de previsões e explicações mais consistentes para os fenômenos, ela deixou de ser ferozmente combatida e por enquanto ainda é o paradigma, que claro, um dia será destruído e substituído por outro.

    Prezados leitores, essa minha breve exposição de uma pequena faceta do pensamento de Olavo de Carvalho, pela comparação com os ensinamentos de Kuhn e Copérnico, permite ver que ele não é o aloprado obscurantista que a imprensa descreve. Por outro lado, seu desejo de ser politicamente incorreto às vezes o levava a fazer afirmações polêmicas que poderiam reduzir seu pensamento. A ciência não é uma verdade, mas também ela não é uma simples opinião: o método científico, autodepurativo e em constante evolução, cônscio de suas próprias limitações e por isso capaz de livrar-se dos erros, é o meio mais seguro encontrado até hoje para elaborarmos proposições que representam de alguma forma o mundo que nos cerca.

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