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Convivendo com o inimigo

Posted by on 02/11/2022

O Brasil vai enfrentar grandes desafios, seja quem for o vencedor das eleições presidenciais. O país está muito dividido, as instituições estão em frangalhos, e estamos perdendo dia após dia a capacidade de conviver. Além disso, a natureza desta eleição, meio plebiscito, meio competição de rejeição, vai eleger um presidente sem um programa. Estamos votando por medo, dando um cheque em branco para quem vencer, com a vã esperança de que podemos espantar o fantasma do inimigo.

Trecho retirado do artigo “Futuro Desafiador”, de Pablo Ortellado, publicado no jornal O Globo de 30 de outubro

Ele não era neutro no duelo pela França, mas “meu interesse não me fez esquecer nem as qualidades louváveis dos nossos adversários nem as características lamentáveis daqueles a quem dei apoio.” […] Montaigne era o francês mais civilizado naquela era selvagem.

Trecho retirado do livro “Começa A Idade da Razão”, do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1981), sobre o escritor francês Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592)

    Prezados leitores, na semana passada, na tentativa de explicar a necessidade de tolerar aqueles que não aceitam nossas ideias em prol da liberdade de todos, eu falei da dificuldade histórica de colocar isso em prática. Um dos que tentaram uma trégua entre as facções inimigas no auge das disputas entre católicos e protestantes na Europa foi o rei da França Henrique IV (1553-1610), que por sua tolerância foi considerado inimigo da verdadeira fé e assassinado por um fanático católico. Um dos admiradores de Henrique de Navarra foi o inventor do gênero ensaio na literatura mundial, Michel de Montaigne, que em sua obra justificou a necessidade da tolerância mútua. É tal justificativa que tentarei explicar neste artigo.

    Em sua obra “Ensaios” em três volumes, Montaigne reconhece os limites da razão humana para a obtenção do conhecimento. Ela se baseia na percepção dos nossos sentidos, que é falha e limitada, de forma que a razão não pode ser uma guia infalível. E, no entanto, somos presunçosos: criamos dezenas e dezenas de deuses, formulamos as mais diversas e absurdas hipóteses para explicar o universo e prever o destino do homem depois da morte. Pior, quanto menos sabemos sobre algo, mais acreditamos piamente na teoria filosófica ou religiosa que explica tudo. O fato é que a existência, tanto de nós enquanto seres, como dos objetos que nos rodeiam, está em constante mudança, decadência e morte. Assim, nada pode ser estabelecido com certeza e não temos acesso ao ser enquanto categoria ontológica.

    Daí Montaigne dizer que o pró e o contra são ambos possíveis, que algo pode ser ou não ser e que seu método de pensamento seguia as seguintes regras: “Não estabeleço nada, não compreendo as coisas, evito julgar, eu examino.” Diante das falhas inerentes à razão humana, o melhor era proceder com cautela e adotar uma atitude cética: era forçoso sempre considerar que há um outro ponto de vista que pode ser adotado sobre qualquer assunto, afinal há uma variedade de crenças, leis e códigos morais no mundo. Qual a ciência, filosofia ou religião verdadeira? O que é considerado certo agora, daqui a alguns anos será contestado por uma outra opinião.

    Por outro lado, o ceticismo de Montaigne não o levou nem ao agnosticismo nem ao ateísmo. O agnosticismo para ele era um dogmatismo, pois afinal como podemos ter certeza de que nunca saberemos? Já o ateísmo era monstruoso porque se a constatação socrática de que só sei que nada sei é uma consequência lógica do pensamento cético, Montaigne sabe que enfocar demasiadamente nossas hesitações, dúvidas e contradições filosóficas pode nos levar a trilhar um labirinto intelectual no qual a única certeza será a morte. Depois da revolta ante a constatação de que não é possível chegar a uma verdade absoluta e reverenciar a religião da maneira inocente das almas simples, o intelectual, para seu próprio bem-estar espiritual, deve chegar ao significado profundo das coisas divinas e adotar a fé do seu tempo e lugar. A religião pode encobrir nossa ignorância com mitos reconfortantes, mas devemos fazer as pazes com ela para permanecermos no caminho da civilização.

    Sob essa perspectiva, na guerra fratricida entre as seitas religiosas cujos membros se matavam na França, Montaigne, consciente da relatividade das coisas, adotou o princípio da tolerância, conforme descrito no trecho que abre este artigo. Embora fosse fielmente católico, pelas razões acima expostas, ele não deixava de ver defeitos nos membros da sua tribo e qualidades nos membros da tribo inimiga, afinal ele podia perceber que as diferenças filosóficas e morais entre as duas correntes eram fruto de um desenvolvimento histórico que levaram à criação de costumes e de regras específicas. Daí sua admiração pelo homem responsável pelo Édito de Nantes, que tentou estabelecer a tolerância religiosa no ordenamento jurídico francês do século XVI.

    Prezados leitores, imbuída do espírito do grande ensaísta francês, proporei um exercício intelectual ao qual os convido para apaziguarmos os ânimos tão acirrados depois das eleições presidenciais de 30 de outubro, conforme corretamente previu o jornalista Pablo Orellano no artigo mencionado na abertura deste artigo. Que tal se os bolsonaristas reconhecerem que o voto em Lula não é necessariamente fruto de fraude nas urnas eletrônicas, mas devido ao carisma do ex-presidente e agora futuro presidente, a sua trajetória pessoal de superação, com a qual muitos brasileiros se identificam por causa da própria formação histórica do país?  Que tal se os lulistas reconhecerem que o voto em Bolsonaro não é necessariamente um voto de extremistas contra a democracia, mas um voto de protesto contra a politização exagerada do Judiciário, contra suas decisões erráticas que levam os cidadãos a desconfiar da motivação delas? E que tal se o ministro do STF Alexandre de Moraes não querer controlar até o sentido que as pessoas dão à palavra culpado?

    Talvez seja um exercício em vão e nosso destino é nos digladiarmos com nossos parentes e amigos, tal como os franceses fizeram à época em que Montaigne viveu. No entanto, fica a lição do primeiro ensaísta: conviver com o inimigo, saber que ele tem as mesmas falhas de julgamento que você, mas ao mesmo tempo tem valores e aspirações espirituais como você tem é o melhor remédio para este Futuro Desafiador.

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