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Cogito ergo sum

Posted by on 08/12/2022

O novo “método” de Descartes na filosofia, seu novum organum, era o de analisar concepções complexas e separá-las nos seus elementos constitutivos, até que os elementos irredutíveis sejam ideias simples, claras, distintas, e o de mostrar que todas essas ideias básicas podem ser derivadas ou depender de uma consciência primária de um ser de que ele pensa. De outro modo, deveríamos tentar deduzir dessa percepção primária todos os princípios fundamentais da filosofia.

Trecho retirado do livro “Começa a Idade da Razão” do filósofo e historiador americano Will Durant (1885-1975)

As coisas que nós concebemos de maneira muito clara e distinta são todas verdadeiras, e isso não é garantido por outra coisa que o fato de Deus ser ou existir e que ele é um ser perfeito e que tudo aquilo que está em nós vem dele: daí que nossas ideias ou noções, sendo coisas reais, e que vêm de Deus na medida em que são claras e distintas, não podem ser outra coisa que verdadeiras. De sorte que se nós temos aquilo que frequentemente contém falsidade, talvez isso não seja outra coisa que não o fato de que há nela algum elemento confuso e obscuro, devido ao fato de essa coisa fazer parte do nada, isto é, ela não é confusa por outra razão que não o fato de que nós não somos perfeitos.

Trecho retirado do livro O Discurso do Método, do filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650)

    Prezados leitores, na semana passada, sob o título Eppur, si muove escrevi um artigo sobre as ideias filosóficas do matemático e físico italiano Galileo Galilei (1564-1642) e como elas incomodaram a Inquisição Católica, particularmente quando elas defendiam a preponderância das constatações obtidas por meio do método científico sobre as afirmações textuais da Bíblia. Nesta semana, meu alvo será outro pioneiro da Idade da Razão descrito por Will Durant em seu livro, René Descartes, cuja filosofia costuma ser resumida pela famosa frase Cogito, ergo sum, Penso logo existo, “Je pense, donc je suis”, conforme está escrito no original do seu livro “O Discurso do Método”. Eu a utilizarei como ponto de partida para entender o novo método filosófico de Descartes, que tanto influenciou a cultura francesa, dando a todas as suas manifestações, quer seja na literatura, na arte ou na dramaturgia, forma, moderação, ordem e racionalidade.

    Como deixar de duvidar de tudo? Como não ser cético em relação a tudo? A resposta está em considerar a própria experiência mental, que é um processo autoconsciente: se reflito e duvido da minha própria existência isso em si prova que a minha existência é algo real, porque se eu não existisse não haveria um processo mental ocorrendo de dúvida sobre o próprio ser. Eu posso pensar que estou andando e na verdade não estar, quando por exemplo eu estou sonhando que estou andando. Mas se eu penso que estou pensando isso em si é incontestável, porque o processo de reflexão já está ocorrendo. Dessa forma, é possível crer em uma ideia simples e clara, a de que minha existência é real, porque é comprovada pela consciência que minha mente tem dela. Nesse sentido, o pensamento é a única realidade que nos é direta e vividamente conhecida.

    Descartes liga a certeza da sua própria existência como ser pensante àquela de Deus, conforme mostra o trecho que abre este artigo. As ideias simples e claras são inspiradas em nós por Deus, que é um ser perfeito e portanto, só pode ser verdadeiro. Tudo o que em nós é confuso e obscuro não vem de Deus e deve ser extirpado. E como aproximar-se cada vez mais de Deus e da verdade e distanciar-se da falsidade e do Nada? Descartes explica em seu livro o caminho que ele próprio percorreu seguindo sua razão.

    O segredo é duvidar de tudo e só adotar uma ideia quando ela for tão cristalina e distinta a ponto de ser incontestável. Descartes introduziu no mundo ocidental a noção de dúvida sistemática. Devemos duvidar de tudo, dos nossos sentidos, dos nossos silogismos, das nossas opiniões, da nossa imaginação. Mas a dúvida não é um fim, como é para os céticos, mas um meio de chegar à verdade.

    Para isso devemos fazer uma verificação rigorosa de modo que nada escape nossa atenção.   Considerando a complexidade do mundo, as ideias que servirão de axiomas só podem ser obtidas se destrincharmos cada problema com que nos deparamos em diversas partes, tantas quantas forem necessárias para isolar os elementos básicos e chegarmos às ideias claras e distintas, ao conhecimento certo de objetos simples. Uma vez obtidos esses princípios fundamentais, podemos percorrer o caminho oposto, que é o de partir do mais simples para o mais complexo reunindo os blocos obtidos durante a análise para montar o edifício cognitivo.

    Daí porque Durant descreva Descartes como um dos pioneiros da Idade da Razão, que revolucionou a civilização judaico-cristã. O filósofo francês não tem como meta sair vitorioso de um argumento, como era comum nas escolas da sua época, marcadas pelas disputatios herdadas da pedagogia escolástica, em que o aluno propunha uma tese que era oposta por outro aluno. Esses exercícios de retórica não acrescentavam nenhum conhecimento, não faziam os participantes chegarem a alguma verdade que não conheciam, porque não havia o sopesamento dos argumentos prós e contras com vistas a uma conclusão compartilhada por todos os participantes. Ao contrário, quem muito se dedicava a isso só conseguia fazer prevalecer a verossimilhança, por ter usado truques retóricos para parecer mais convincente e ganhar o debate.

    Prezados leitores, “O Discurso do Método” é um livro curto e acessível e tornou a filosofia algo inteligível para os franceses. A popularidade do livro foi tal que René Descartes foi convidado em 1649 a ser professor de filosofia da Rainha Cristina da Suécia (1626-1689), o que o acabou matando de pneumonia, pois a soberana queria ter três aulas por semana às 5 da manhã. Outro dos motivos de ter sido um best-seller foi o fato de Descartes ter usado um tom de intimidade para descrever seu percurso intelectual, tal qual um cavaleiro que descreve suas aventuras. Longe do filósofo de querer impor seu método aos leitores: em contando sua experiência como um ser humano que tem um vislumbre de Deus e da verdade por meio da atividade de pensar, Descartes estimula os leitores a fazer o mesmo devido ao seu próprio sucesso na empreitada. Penso, logo existo: essa é a receita do bolo cartesiano. Convido vocês a colocá-la em prática lendo “O Discurso do Método”, uma pequena grande obra.

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