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Nossa humanidade

Posted by on 08/03/2023

Pode-se dizer então que a pessoa a quem falta um senso de justiça e que jamais agiria conforme manda a justiça, a não ser por interesse próprio e conveniência, não somente não estabelece laços de amizade, afeição e confiança mútua, mas é incapaz de experimentar ressentimento e indignação. A ela faltam determinadas atitudes naturais e sentimentos morais de um tipo especialmente elementar. Colocado de outra forma, aquele a quem falta o senso de justiça carece de determinadas atitudes e capacidades fundamentais incluídas na noção de humanidade.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Historiadores informam que, desde esse acontecimento, a figura do pai se tornou insuportável para Maria. Se, por um lado, seu adultério e sua desumanidade a horrorizavam, por outro, Maria lhe devia lealdade de filha e de soberana sucessora.

Trecho retirado do livro “D. Maria I, As perdas e as glórias da rainha que entrou para a história como “a louca””, da historiadora Mary del Priore

Contar histórias é a melhor pedagogia. A combinação de uma narrativa racional com uma outra, paralela e emocional, torna o aprendizado mais profundo e duradouro.

Trecho retirado do artigo “O casamento da razão com a emoção”, escrito por Cláudio de Moura Castro e publicado no jornal O Estado de São Paulo em 5 de março

    3 de setembro de 1758. Em pleno período de luto oficial pela morte de Maria Bárbara, rainha da Espanha (1711-1758), o rei de Portugal, D. José I (1714-1777), sai na calada da noite para encontrar-se com sua amante, Teresa de Távora e Lorena. Ao voltar para o palácio, o rei sofre um atentado, sendo ferido no ombro e no braço direito. Com raiva e influenciado pelo seu ministro mais importante, Sebastião José de Carvalho e Melo, que em 1770 receberia o título de Marquês de Pombal, o rei faz prender todos os membros da família dos marqueses de Távora, que viam com maus olhos os amores clandestinos da irmã mais nova do marquês com D. José. Depois de sofrerem torturas e serem coagidos a confessar a tentativa de regicídio, foram condenados à morte supliciante: braços e pernas partidos, o tórax esmagado na roda e por fim o estrangulamento. Ao todo, 18 pessoas foram mortas em um único dia para aplacar a sanha do rei, cujo orgulho havia sido ferido e cujo relacionamento com a bela Teresa teve que ser interrompido em virtude do escândalo, e a do seu primeiro-ministro, que viu nesse episódio a oportunidade de livrar-se de alguns membros da velha aristocracia e assim continuar a perseguir seu objetivo de modernizar Portugal.

    Prezados leitores, nesta semana resolvi seguir o conselho de Cláudio de Moura Castro e começar meu humilde artigo contando uma história que desperta a curiosidade com o objetivo de explicar-lhes algo da maneira mais propícia a que a mensagem perdure no cérebro, atrelando-a à emoção positiva criada pela história. No caso, a lição a ser tirada dessa combinação de um enredo com um conceito é aquela que a própria filha de D. José, o rei louco de paixão por Teresa, tirou, conforme descreve Mary del Priore no trecho citado acima: a de que seu pai, a despeito de seguir todos os rituais da Igreja Católica, a despeito de professar seu cristianismo aos quatro ventos, era um monstro que aniquilou toda uma família, os Távora, por raiva e mesquinhez valendo-se do seu poder de soberano para usar a justiça como instrumento de vingança contra aqueles que atrapalharam sua felicidade amorosa. O conceito por trás dessa percepção de Maria (1734-1816), a futura rainha de Portugal, acerca da verdadeira natureza do seu pai, quem dá é John Rawls, que fala sobre os sentimentos morais em seu livro “Uma Teoria da Justiça”.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o senso de justiça está atrelado a determinados sentimentos morais. Para Rawls, as pessoas agem de acordo com os ditames da justiça porque, por meio dos relacionamentos estabelecidos ao longo da vida, elas se afeiçoam a outras pessoas, passam a confiar nelas, as admiram, procuram satisfazer as expectativas delas e procuram ser reconhecidas por elas. Em fazendo isso, adquirem naturalmente um senso daquilo que devem fazer de certo para atingir os padrões de excelência que esses relacionamentos impõem. E tendo um sentimento interior do que é o certo e o que é o errado e a vontade sincera de não decepcionar aqueles que amam, sentem vergonha quando falham em fazer aquilo que seus pais e amigos esperam delas e também se indignam quando são afetados negativamente pelo comportamento egoísta desses mesmos pais e amigos de quem elas esperavam um comportamento leal.

    À luz dessa explicação de Rawls sobre como os sentimento morais são desenvolvidos no ser humano e nos fazem adquirir a noção do que é justo e do que é injusto, podemos entender o impacto sobre a psiquê de Maria da revelação da monstruosidade do pai: os Távora eram amigos de Maria e da mãe, frequentavam o Paço da Ribeira, local da residência dos reis de Portugal antes do terremoto que devastou Lisboa em 1755. Se o rei agiu dessa maneira cruel com pessoas que eram próximas do seu círculo familiar mais íntimo, isso significa que ele não tinha a mínima consideração sobre a opinião que a mulher e a filha teriam das arbitrariedades que ele perpetrou contra pessoas que foram acusadas imediatamente e julgadas sumariamente. E ele não tinha a mínima consideração sobre a opinião delas porque não tinha verdadeiros laços de amor e confiança suficientes para se sentir culpado perante a rainha consorte e a futura rainha. Quem sabe esse episódio que revelou a Maria a face sinistra do pai foi o gérmen da loucura que se abateria sobre aquela que foi apodada de “a Viradeira”?

    Prezados leitores, como bom racionalista que é, John Rawls nos diz que ser humano é ter uma predisposição natural a ter um senso de justiça. Quem não o tem é bárbaro, porque não passou pelo percurso psicológico que o cientista político descreve como necessário para a aquisição desse senso de justiça, a saber os relacionamentos com os pais, com os amigos e com os membros da sociedade como um todo. Maria, a Louca, naquele ano de 1758 vislumbrou que o que parece real é ilusório e que nossa humanidade pode ter bases muito frágeis. Que a epifania da primeira rainha de Portugal, vista sob a ótica dos sentimentos morais descritos por John Rawls, sirva para mostrar a nós mesmos a necessidade de cultivarmos nossa humanidade para que ela não seja tragada pela raiva, pela vingança e pela contrariedade.

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