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Singelas utopias

Posted by on 12/04/2023

Mas uma vez as condições sociais exigidas e o nível de satisfação das carências e das necessidades materiais seja atingido, como ele o é em uma sociedade bem organizada sob condições favoráveis, os interesses de grau mais alto passam a regular tudo. […] Mas em uma sociedade bem organizada a necessidade de status é atendida pelo reconhecimento público de instituições justas, juntamente com a vida interna diversa e plena das muitas comunidades de interesses livres permitidas pelas liberdades iguais. A base do respeito próprio em uma sociedade justa não é então a fatia da renda, mas a distribuição afirmada publicamente dos direitos e liberdades fundamentais.

Trecho retirado do livro “Uma Teoria da Justiça” de John Rawls, filósofo político americano (1921-2002)

Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e há de ser, que me dói demais o Brasil que é. A utopia brasileira é singela: comida, casa, escola e remédio. O orgulho como povo. O espírito nacional, a criatividade e a alegria, isso já foi feito.

Fala de Darcy Ribeiro, antropólogo, educador, ensaísta e político brasileiro (1922-1997)

    Prezados leitores, a fala que abre este humilde artigo eu a recolhi na exposição Utopia Brasileira: Darcy Ribeiro 100 anos, em cartaz no SESC da rua 24 de Maio, no centro de São Paulo. Ela resume bem aquilo que deveríamos ter conseguido no Brasil – e de resto na América Latina – e falhamos em obter ao longo de cinco séculos: prover às necessidades materiais e espirituais do povo para que ele florescesse e o nosso país deixasse de ser um moedor de gente, como Darcy definia o Brasil, em que a elite deixava o povo de lado. Para o criador dos CIEPs e do Sambódromo no Rio de Janeiro, nosso atraso não se devia à colonização ibérica, ao clima demasiado quente, à herança genética negra e indígena, e nem mesmo à exploração colonial europeia, a qual foi realizada em outros países, como a China, citada por Darcy como exemplo de país que soube superar o legado do imperialismo a que foi submetido.

    Ao contrário, nós não conseguimos prover às necessidades básicas de alimentação, saúde e educação porque fomos incapazes até agora de nos indignarmos com a miséria e a desigualdade e de nos reinventarmos e organizarmos para mudar esse estado de coisas. Para Darcy, um eterno otimista, bastava que tomássemos a iniciativa política de mudar as coisas, de concretizar no aqui e no agora a singela utopia de tratar o povo com respeito e dar-lhe dignidade com comida, casa, escola e remédio.

    Pode-se concordar ou discordar com o diagnóstico e com a solução dados pelo autor de Maíra às mazelas brasileiras, mas não se pode negar a pertinência das suas reflexões para os dias atuais. Darcy previa que se a América Latina não conseguisse resgatar o povo da miséria material e espiritual haveria conflitos étnicos por aqui, entre os diferentes povos que compõem nossa diversidade. Ele fracassou em concretizar a utopia brasileira, mas o consolo dele, de acordo com suas próprias palavras, é que ele estava ao lado dos perdedores, e não dos vencedores.

    Diferente é a utopia que John Rawls propõe em seu livro “Uma Teoria da Justiça”, mais sofisticada do que a de comida no prato, criança na escola e a família toda no posto de saúde. Mais sofisticada, porque ela vai além da singela utopia brasileira, partindo do pressuposto de que a alimentação, a educação e a saúde seriam providenciadas de maneira satisfatória na sociedade de homens livres vislumbrada pelo filósofo político americano. Rawls considera que na posição original, em que os homens escolhem os princípios de justiça, eles privilegiarão a garantia das liberdades em detrimento das vantagens econômicas, pois desta forma eles conseguirão organizar a sociedade de maneira que cada indivíduo terá a oportunidade de cultivar suas potencialidades naturais e vê-las florescer e no conjunto a sociedade, unida em torno do respeito mútuo existente entre seres igualmente livres, será maior do que a soma dos seus membros.

    Sob esse aspecto, na utopia de Rawls, a liberdade tem primazia porque ela permite que a sociedade chegue a um estágio de estabilidade que garante seu funcionamento no longo prazo. De fato, se de um lado a liberdade leva à desigualdade entre os membros da sociedade, pois as diferenças de talentos poderão ser expressas sem restrições, fazendo com que uns tenham mais bens materiais do que outros, de outro essa mesma liberdade, garantida a todos, faz com que os indivíduos não se preocupem com a sua posição relativa na sociedade. Conforme o trecho que abre este artigo, gozando do direito de associar-se a quem quiser, de concretizar seu plano de vida específico, adaptado às suas características, o indivíduo livre adquire respeito próprio por constatar que suas especificidades, incluindo suas crenças religiosas e políticas são respeitadas, independentemente da sua posição na hierarquia econômica. Haverá pessoas com mais renda do que ele, mas a todos são garantidas instituições justas que não permitem que o benefício de uns seja conseguido à custa do prejuízo dos outros, de forma que as desigualdades de renda possam ser toleradas como um tributo a ser pago em prol da prosperidade geral, concretizada em liberdades e oportunidades para todos.

    Considerando essas explicações, quão diferente a utopia brasileira de Darcy Ribeiro da utopia americana de Rawls? Para Rawls, seguindo John Stuart Mill, à medida que o homem tem suas necessidades básicas satisfeitas, ele dará importância cada vez maior à liberdade. A pergunta que se coloca é se é possível em uma sociedade extremamente desigual como a nossa dar primazia à liberdade na organização das instituições, sem que se prejudique o objetivo de combate à miséria material. Rawls, viveu em um país materialmente próspero como os Estados Unidos, em que todos conseguiam melhorar de vida, mesmo que alguns melhorassem muito mais do que outros. Darcy Ribeiro viveu em um país em que uma parcela da população esteve permanentemente alijada dos bens materiais mais básicos, como comida e moradia. Os desafios, portanto, foram outros. No caso do professor de Harvard, era garantir que a prosperidade material levasse à estabilidade das instituições e ao pleno desenvolvimento moral e intelectual dos indivíduos pelo exercício da liberdade em uma estrutura justa. No caso do fundador da Universidade de Brasília, o desafio era garantir que o povo não fosse jogado na caçamba como material utilizável e descartável depois de não mais servir como objeto de exploração. A liberdade para Darcy Ribeiro nunca foi um foco de preocupação, não porque ele fosse comunista, mas porque como grande humanista, ele via as veias abertas da América Latina, que mostravam o destino de milhões de pessoas que nunca tiveram acesso ao mínimo para terem uma chance de participar da sociedade de maneira produtiva para si e para os outros.

    Singelas utopias de um lado, sofisticadas utopias de outro. Talvez um dia as Américas se encontrem na concretização de uma única utopia. Por enquanto, para nós latino-americanos, ricos e pobres, não nos esqueçamos da utopia brasileira de Darcy Ribeiro. Concretizá-la é o primeiro passo a ser tomado se quisermos parar de sermos povos fracassados e assim adquirirmos o respeito próprio que um dia nos permitirá escolher a liberdade preconizada por Rawls.

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