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Um julgamento de Sócrates: antidemocrático e irrealista

Posted by on 19/04/2023

[…] dois aspectos complementares do exercício filosófico de Sócrates junto às demais pessoas: o aspecto negativo, do exame crítico de colocar à prova as convicções de seus interlocutores a fim de verificar sua consistência interna, da refutação e da subsequente censura daqueles que se mostrarem falíveis; e o aspecto positivo, da exortação a uma vida submetida continuamente ao exame crítico, à valorização daquilo que de fato é benéfico aos homens (inteligência, virtude), e não dos bens aparentes (dinheiro, reputação, honra)

Trecho da introdução à tradução de “Apologia de Sócrates” escrita por Daniel Rossi Nunes Lopes e publicada pela Editora Perspectiva

[…] um modo de vida socrático é aquele em que um indivíduo é autossuficiente ao máximo, com o controle de sua própria vida, e que usa a razão como o instrumento para satisfazer as condições da felicidade

Trecho retirado da obra Cambridge History of Hellenistic Philosophy, citada no livro mencionado acima

    Prezados leitores, há algumas semanas, no texto “Gênios Compreendidos” eu mencionei a rede de escolas Acton Academy, que adota um método socrático de ensino pelo qual são feitas perguntas aos alunos sem que os professores deem as respostas. Nesta semana meu objetivo será o de explicar com mais detalhes tal método, no contexto do julgamento a que foi submetido Sócrates (470 a.C.˗399 a.C.) sob a acusação de impiedade e de corrupção dos jovens. A defesa que o filósofo faz de si mesmo durante o processo judicial, tal como retratada por Platão na “Apologia de Sócrates”, acaba sendo a proposição de um modo de vida filosófico.

     A impiedade de que é acusado Sócrates consiste na alegação de que ele não respeitava os deuses da cidade de Atenas e mesmo que ele era ateu. O filósofo irá argumentar perante seus julgadores que na verdade ele era o mais pio dos homens, aquele que cultivava Apolo da maneira mais pura, justamente pelo seu modo de vida. A religião não era simplesmente seguir rituais de sacrifícios e ofertas aos deuses para ter as súplicas acolhidas. Era muito mais ter um comportamento moral, tentar ser justo na medida do seu conhecimento da justiça e buscar sempre o conhecimento para saber exatamente como agir de maneira correta nas mais diferentes situações. Servir aos deuses era praticar a justiça, a integridade moral por meio do aperfeiçoamento individual contínuo, porque em assim fazendo o homem contribuiria para o bem comum, satisfazendo assim o desejo dos deuses de harmonia e paz.

    E esse aperfeiçoamento individual só seria obtido se o homem se dispusesse a examinar criticamente aos outros e a si mesmo, conforme explica o trecho que abre este artigo: isso significa checar as premissas dos argumentos e definições, verificar se elas se coadunam com os fatos e, se elas apresentam inconsistências por se aplicarem a alguns fatos e não se aplicarem a outros, o único caminho a tomar é descartá-las por não terem a universalidade necessária para fundamentar generalizações a partir de casos concretos com a mesma natureza. Se as premissas e as definições não podem ser extrapoladas de maneira segura, isso significa que são inúteis e prejudiciais na busca do homem pela verdade.

    E a verdade para Sócrates é um valor fundamental, associado à moralidade e à justiça. Para o filósofo, o ser humano é injusto e mau involuntariamente, isto é, por falta de conhecimento, daí porque, conforme o segundo trecho que abre este artigo, Sócrates estabelece a razão como instrumento da felicidade: examinar-se a si mesmo, descobrir suas fraquezas, sua ignorância sobre determinado assunto é o melhor caminho para o homem atingir a felicidade, que é viver bem e sem cometer injustiças.

    É essa incessante autocrítica, em busca da verdade moral e espiritual que os acusadores de Sócrates denunciam como corruptora dos jovens, na medida em que leva os filhos a desrespeitar os pais, os alunos a questionar os mestres, os cidadãos a questionar as autoridades. Nesse sentido, sob a ótica do senso comum em vigor em sua cidade natal, Sócrates subverte as regras da democracia em Atenas por não dar importância à vida pública e às discussões dos cidadãos a respeito dos rumos a serem tomados pela cidade.

    Enfatizando o percurso individual de questionamento ininterrupto e de busca da verdade de maneira autônoma, Sócrates dá pouca importância aos debates democráticos realizadas para a tomada de decisões políticas. Afinal, as ideias vencedoras ali não eram necessariamente as verdadeiras ou mais próximas da verdade, mas as mais persuasivas, que faziam apelo à emoção dos homens, ao seu desejo de glória e poder, e não de cuidado com sua alma pela busca da verdade. Para Sócrates, a salvação não está nas discussões públicas, mas no exame individual da consciência por indivíduos dispostos a a agir de maneira racional.

    No final das contas, Sócrates foi condenado à morte por ser ímpio, traidor da pátria por solapar a democracia e corruptor dos jovens por incentivá-los a desobedecer. Será que o seu viés antidemocrático inviabiliza a aplicação do seu método para a educação de cidadãos que atuarão em um sistema democrático? Será que em uma democracia, em que os cidadãos, ou melhor, seus representantes eleitos, precisam estabelecer prioridades na aplicação das verbas públicas, questionar e criticar tudo em nome da perfeição é producente? Será que não é mais viável contentar-se não com a verdade, mas com um consenso mínimo que permita tomar decisões sobre o que fazer na prática? Será que os embates de personalidades que cativavam o povo na ágora ateniense não eram, em última análise, o melhor meio de chegar ao que era factível, pelo choque de ideias diferentes? Será que o ideal de homem racional e autossuficiente de Sócrates que persegue sua própria verdade uma concepção por demais elitista dos seres humanos? Será que é factível esperar que todos os homens persigam o bom e o justo para o bem da sua alma?

    Prezados leitores, a condenação por crime político mais famosa da história merece ela mesma um exame crítico que revele a complexidade do objeto da condenação, Sócrates, um filósofo que não morria de amores pela democracia, talvez justamente por ela ser o melhor sistema para lidar com as imperfeições dos homens, ele que considerava que todos os homens podiam ser racionais e abnegados como ele, desde que quisessem renunciar às suas paixões.  Meu humilde julgamento do Sócrates platônico é que ele era um indivíduo antidemocrático e irrealista, apesar de todas as suas qualidades morais e intelectuais.

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