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Justa pena

Posted by on 21/06/2023

[…] deve-se trazer à luz o ato injusto, a fim de pagar a justa pena e se tornar saudável; deve-se constranger a si mesmo e aos demais a não se acovardarem, mas a se apresentarem, de olhos cerrados, correta e corajosamente como se fosse a um médico para algum corte ou cauterização […]

Trecho de fala do personagem Sócrates em seu diálogo com Polo em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

 

“O estigma do ex-presidiário equivale a ter sua trajetória marcada na carne. É fácil identificar, pela linguagem corporal e verbal, pelas roupas, alguém que passou pelo cárcere”, explica Corrêa. “Quando consegue superar a primeira barreira e ser contratada, de modo geral surgem as queixas de que a pessoa não sabe se portar, nem lidar com os colegas, nem se adequar à disciplina que o ambiente de trabalho exige. Não é estranho? Afinal, pelo menos em tese, o sistema penal existe justamente para disciplinar.”

Trecho retirado do artigo “De Volta ao Erro”, escrito por Diego Viana e publicado na revista FAPESP de junho de 2023

    Prezados leitores, na semana passada, ao explicar a diferença entre tekhne e adulação feita pelo filósofo Sócrates (470 a.C.-399 a.C.), na qualidade de personagem do diálogo Górgias, eu dei uma definição de justiça que se adequava ao contexto dessa oposição: ao falar que justiça é dar a cada um o que é seu isso é uma tekhne pelo fato de pressupor uma investigação das circunstâncias do caso concreto que requer uma solução de maneira equilibrada e sem paixões, isto é sem favoritismos derivados de predileções pessoais; ao contrário, a retórica não é justiça mas adulação, porque almejando conquistar a boa vontade da plateia, procura dizer aquilo que ela quer ouvir para convencê-la a seguir um curso de ação que não é necessariamente o mais sábio e mais justo, num toma lá dá cá em que trocam-se os elogios pelo poder de dirigir as decisões do demo, como Sócrates se referia ao povo.

    Nesta semana, explorarei um outro aspecto da concepção socrática de justiça que aparece no mesmo diálogo Górgias, em uma nova interação entre o filósofo e seu interlocutor, Polo. Para Polo, quem comete injustiça é feliz, contanto que não pague a justa pena. Para corroborar sua afirmação, ele cita o exemplo de Arquelau, filho de Perdicas, que governou a Macedônia de maneira tirânica de 413 a.C. a 399 a.C. Arquelau, segundo o testemunho de Polo, fazia na Macedônia o que lhe parecia, conforme sua própria opinião: matava, bania e vivia muito bem, porque seu poder lhe permitia permanecer impune. Para Sócrates, isso era uma mentira: aquele que cometia injustiça era o mais infeliz dos homens, mais infeliz do que a pessoa que havia sido injustiçada impunemente. E o que cometeu injustiça será menos infeliz se pagar a justa pena. Diante da perplexidade de Polo com essa proposição, Sócrates elabora seu argumento.

    Como mostra o trecho que abre este artigo, ele o faz traçando uma analogia entre a justiça e a medicina, ambas conceituadas por ele como tekhne, conforme explicado em “A tekhne ou a falta dela”. Ao cometer uma injustiça, o indivíduo mostra estar sofrendo de um desequilíbrio, de um vício que corrói a alma como uma infecção corrói o corpo. Assim como o homem doente se submete ao tratamento médico que pode lhe causar dor, mas ao final lhe traz saúde e bem-estar físico, o homem injusto, contrito, submete-se à punição pelo que ele fez, que pode significar açoite, prisão, exílio e até a pena de morte. Para Sócrates, ao se submeter voluntariamente ao castigo e cumprir a pena, o homem injusto sana sua alma doente pois adquire a temperança que o leva a autocontrolar-se, a não ceder às suas paixões.

    Portanto, ao invés de o homem que cometer um ato injusto defender-se no tribunal tentando convencer os jurados, por meio da retórica, a não o punir porque ele é inocente, ele acusa-se a si mesmo e obedece à lei da pólis. Tendo superado dessa maneira o caos causado pela injustiça, o homem que sofre a justa pena atinge o patamar da justiça, do bem e do belo: ele está em paz consigo mesmo e com seus concidadãos, tendo agido lealmente ao reconhecer seu erro e submeter-se ao castigo para poder participar de novo da vida em sociedade e desfrutar dos benefícios da civilização.

    É à luz dessa concepção terapêutica da pena que me volto à realidade brasileira da taxa de reincidência criminal no país, conforme mostrada no artigo da revista FAPESP citado acima. Ninguém sabe ao certo qual é o número exato daqueles que voltam a cometer crimes depois de terem sido condenados e cumprido a pena. Estudos realizados em alguns Estados do Brasil colocam a taxa de reincidência na faixa entre 24% e 51%, o que é um número menor do que os 70% colocado no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito realizada em 2008 sobre o sistema carcerário brasileiro.  De qualquer forma, seria bom que esse cometimento renovado  de crimes fosse diminuído cada vez menos. Que políticas públicas deveriam ser seguidas no Brasil afora para que a reabilitação de condenados pela justiça ocorra? Como dar à pena imposta aos presidiários brasileiros o efeito terapêutico descrito por Sócrates, de maneira que ela, seguindo a analogia com a medicina, inocule o indivíduo contra o cometimento de novos crimes quando sai da prisão?

    “A volta ao erro” relaciona os problemas do sistema prisional no Brasil. A superlotação das prisões favorece o ingresso do sentenciado na “carreira do crime”: ao conviver com outros presos, ele aprimora suas técnicas de uso de armas, de decisão sobre quando ir em frente ao decidir a empreitada, de como lidar com a pessoa que reage ou foge, de escolha do lugar ideal para assaltar. Uma vez entrando no mundo do crime, o indivíduo é estigmatizado pela família, que muitas vezes o renega e o evita, e pela sociedade, que lhe fecha as portas do mercado formal de trabalho. O trabalho nas prisões para remição da pena é uma exceção, pois o Estado dá baixa prioridade a tais atividades e o orçamento é sempre insuficiente.

    Portanto, depois de cumprir sua pena, o sentenciado e agora ex-presidiário não terá sido disciplinado e “cauterizado” para repetir a analogia médica presente no Górgias. Ele trará em sua alma a infelicidade sentida por tipos como o rei Arquelau da Macedônia, que ficaria infeliz se fosse pego cometendo injustiça e tem como objeto de vida ser feliz fazendo o que quer e não assumindo responsabilidade por seus atos injustos. Tanto que, de acordo com o relatório do Depen, o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, o reincidente, ao cometer um novo crime, o faz logo após a soltura, sendo que dois terços dos delitos de reincidentes ocorrem no primeiro ano de liberdade, o que mostra que a pena não serviu para fazê-lo arrepender-se dos seus atos e fazê-lo transformar-se em um homem justo. Conforme o trecho que abre este artigo, o egresso dos cárceres brasileiros é facilmente identificável pelos gestos, pelo modo de falar e pela falta de adaptação à vida na sociedade normal, em que as pessoas agem mais ou menos de maneira correta com as outras.

    Prezados leitores, pode ser que o ideal da purgação da alma que a punição pelo ato injusto, tal como preconizado por Sócrates, seja uma quimera, e o máximo que possamos esperar dos egressos do sistema prisional é que eles não voltem a cometer novos crimes por terem medo de voltar ao inferno da cadeia. Por outro lado, a ressocialização na prisão como uma terapia que melhore o comportamento do preso quando volta à sociedade deveria ser um princípio a ser concretizado. A justa pena pode não criar o homem justo e bom vislumbrado por Sócrates, mas deveria criar um homem disciplinado o suficiente para não ser eterna fonte de problemas.

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