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Yahoos

Posted by on 05/07/2023

Nem a razão é entre eles um ponto problemático como é entre nós, em que os homens podem discutir de maneira plausível defendendo ambos os lados da questão; ao contrário, o indivíduo fica imbuído de uma convicção imediata; como necessariamente deve ocorrer quando a razão não é misturada, obscurecida ou desfigurada pela paixão e pelo interesse. […] De maneira que controvérsias, arengas, disputas e assertividade em relação a proposições falsas ou duvidosas são males desconhecidos entre os Houyhnhnms.

Trecho retirado do livro “As Viagens de Gulliver”, do escritor irlandês Jonathan Swift (1667-1745), em que ele descreve o povo que habita o País dos Houyhnhnms

Todavia, redirecionar seus apetites e não lhes ceder, usando a persuasão e a força de modo a tornar melhores os cidadãos, nesse aspecto eles em nada se diferem dos outros, por assim dizer, e esse é o único feito de um bom político.

Trecho da fala do personagem Sócrates em seu diálogo com Cálicles em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.) em que o filósofo compara os políticos de sua época com os antigos, como Péricles, Címon, Milcíades e Temístocles

Se traçarmos um panorama das maiores ações que foram realizadas no mundo … que são o estabelecimento de novos impérios pela conquista, o avanço e o progresso de novos esquemas filosóficos e a elaboração, assim como a propagação, de novas religiões, constataremos que os criadores de todos eles foram pessoas cuja razão natural permitiu grandes revoluções por conta da sua dieta, da sua educação, da prevalência de certo temperamento, juntamente com a influência de determinado clima e atmosfera… Porque o entendimento humano, alojado no cérebro, é perturbado e inundado por vapores que ascendem das faculdades baixas para irrigar a invenção e torná-la frutífera.

Trecho da obra “História de um Tonel” do escritor irlandês Jonathan Swift (1667-1745), citado na obra “A Era de Luís XIV”, escrita por Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, na semana passada eu explorei a questão se Vladimir Putin, o presidente da Rússia, é ou não é um tirano, no sentido dado à palavra por Cálicles, o interlocutor de Sócrates no diálogo Górgias, ou seja, o líder político que ascende ao poder e impõe suas próprias normas com coragem e inteligência, mantendo-se no topo e adquirindo fama e glória, aclamado pelas massas como grande homem porque soube mostrar força suficiente para derrotar seus inimigos. Não pretendi então dar respostas a essa pergunta, mesmo porque o desenrolar da guerra na Ucrânia está longe de um desenlace, e tal desenlace irá definir a sorte de Putin e sua continuidade no poder, de forma que ele pode sair-se vitorioso e conseguir permanecer como presidente do maior país do mundo por quanto tempo ainda ele considerar que esteja apto para trabalhar, ou pode ser derrotado e terminar como o rei Arquelau, citado naquele artigo.

    Nesta semana meu objetivo será o de explorar o porquê de nós termos uma atração por tiranos, em todas as épocas históricas e em todas as civilizações. Por que nós, seres humanos, vira e mexe colocamos em um panteão esses líderes que forçam seu caminho rumo ao topo pela vontade e pela simbiose com as massas? Para tanto, vou me valer não só das interações entre Cálicles e Sócrates, mas das reflexões de Jonathan Swift, escritor irlandês criador de sátiras, duas das quais citadas aqui.

    Nas “Viagens de Gulliver”, o narrador-viajante, um ser humano, acaba chegando a uma ilha habitada pelos Houyhnhnms, que mantém sob controle os Yahoos. A diferença entre uns e outros é simples: os Houyhnhnms são seres dotados da verdadeira razão, conforme explicado no trecho da obra citado na abertura deste artigo: eles utilizam seu cérebro para relatar fatos, para entender uns aos outros, para chegar à verdade óbvia a qualquer um, porque desprovida de qualquer viés ditado pelo temperamento, pela paixão, por predileções idiossincráticas; os Yahoos, ao contrário, assemelham-se aos seres humanos, porque têm capacidade de pensar, mas é um pensamento sempre distorcido pelos vieses, pelos “vapores”,  oriundos das emoções, dos instintos mais baixos, conforme Swift explica em “História de um Tonel”, sátira também citada acima, em que o autor fala das origens pouco nobres dos maiores empreendimentos humanos: os impérios, as filosofias e as religiões.

    Dessa forma, os Yahoos só conseguem ter opiniões, que são pensamentos marcados por esses aspectos não racionais e portanto, duvidosos, sujeitos a eternas disputas com outros pensamentos, frutos de uma atividade intelectual contaminada pelas diferenças irredutíveis entre os diferentes membros do grupo. É por isso, que os Yahoos têm uma dupla característica, que é também uma característica dos seres humanos: são brutos e agem por instinto natural, mas ao mesmo tempo fazem coisas que estão além dos instintos porque, dotados de um cérebro, eles acabam o usando para enganar os outros, para satisfazer seus interesses de maneira sub-reptícia e eficaz, de uma forma que a mera satisfação de necessidades instintivas não conseguiria concretizar.

    Os Yahoos conseguem ser intrigantes, maledicentes, espertos para saciar seus apetites da melhor maneira possível, mas jamais chegarão ao nível dos Houyhnhnms que, dotados da verdadeira razão, convivem de maneira pacífica entre si, mostrando-se benevolentes uns com os outros por saberem que a ordem e a paz são o melhor caminho para todos no longo prazo, em que pese a satisfação dos apetites individuais possa ser atraente no curto prazo.

    De um lado então, os seres cujas ações são ditadas pelos apetites e pela racionalização dos apetites, que os torna ainda mais insidiosos, e outro os seres cujas ações são ditadas pelo exercício desapaixonado da razão em busca da verdade óbvia a todos. Ora, essa dicotomia não está presente na discussão entre Cálicles e Sócrates no “Górgias” sobre as práticas políticas na Atenas democrática? No ponto do diálogo cujo trecho abre este artigo, Sócrates propõe seu ideal de líder político, que é aquele que coíbe as paixões dos cidadãos, direcionando-os para o caminho do bem, da ética. O líder político ideal não cai nas graças do povo satisfazendo seus apetites, e sob essa perspectiva Péricles (495 a.C.-429 a.C.), estadista ateniense, ao construir prédios magníficos, muralhas, estaleiros, santuários não fez mais do que adular as massas, e assim falhou no critério estabelecido por Sócrates, pois não tornou seus concidadãos melhores. Ao contrário, eles permaneceram reféns das mesmas paixões que haviam sido satisfeitas no tempo em que Péricles era o líder inconteste de Atenas que a preparava para a fatal guerra contra Esparta expandindo-lhe a infraestrutura. Tanto assim que segundo Diodoro Sículo, Péricles foi acusado de apropriação indébita do erário público e condenado a pagar uma multa de oitenta talentos. Ou seja, o povo que o idolatrava era o mesmo que o acusou de ladrão e que depois o elegeu general.

    À luz das lições de Jonathan Swift e de Platão, parece que nossa natureza de Yahoos, seres dotados de apetites e de uma débil racionalidade que na maior parte das vezes está a serviço da satisfação deles, nos faz termos uma atração fatal pelos tiranos: eles nos adulam, falam aquilo que queremos ouvir, que somos fortes, que somos superiores aos outros, e assim satisfazem nossas necessidades momentâneas, às expensas muitas vezes da nossa sobrevivência e bem-estar a longo prazo. Prezados leitores, diante dessa constatação, só nos resta o conforto de ao menos sermos capazes de termos consciência das nossas fraquezas e de que, embora cientes de que jamais chegaremos a Houyhnhnms, alguns de nós são capazes de cultivar esse ideal inatingível.

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