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De Sócrates a Voltaire: Têmis Reloaded

Posted by on 07/02/2024

Inclusive vocês, ó juízes, devem ser esperançosos quanto à morte, e ter em mente que a única coisa verdadeira é que ao homem bom, é impossível sofrer algum mal, quer em vida, quer depois da morte, e que suas vicissitudes não são negligenciadas pelos deuses.

Trecho retirado do livro “Apologia de Sócrates” de Platão (428 a.C.-348 a.C.) em que Sócrates dirige-se aos juízes que o condenaram à morte

Ora, devemos então conceber assim o homem justo: se ele vier a ser pobre ou doente, se lhe suceder algo aparentemente mau, essas coisas acabarão por se tornar um bem em vida ou depois da morte. Pois, certamente, o deus não negligencia quem almeje com empenho se tornar justo e, cultivando a virtude, assemelhar-se ao deus o quanto for possível a um homem.

Trecho retirado da República de Platão atribuído como fala de Sócrates (470 a.C.-399 a.C.)

Ele [o teísta] acredita que a religião não consiste nem nas opiniões de uma metafísica incompreensível, nem em decorações vãs, mas na adoração e na justiça. Fazer o bem é sua crença; submeter-se a Deus sua doutrina…. Ele ri de Loreto e de Meca, mas socorre o indigente e defende o oprimido.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981), citando o escritor francês François Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778)

Têmis – filha de Urano e de Gaia, Têmis pertence à geração dos deuses primordiais […] Ela é representada com uma balança e uma espada nas mãos (os símbolos da justiça). Mas sobretudo, seus olhos vendados permanecem o símbolo da imparcialidade das sentenças que ela profere.

Verbete retirado do Dicionário Larousse de Mitologia Grega e Romana

    Prezados leitores, o que fazer quando consideramos termos sido tratados de maneira injusta? O que fazer quando sentimos que não fomos tratados como seria o nosso direito e que não recebemos de volta aquilo que demos aos outros, seja de maneira quantitativa em termos de um simples toma-lá-dá-cá, seja de maneira qualitativa, em termos do modo respeitoso, cordial e amoroso com que tratamos os outros e do qual esperamos ser tratados? Essa é uma pergunta cuja resposta depende dos valores de cada um. No século XXI no Brasil, o caminho oficial é ir ao Judiciário, que tratará de solucionar o conflito entre você e seu “inimigo” da maneira mais rápida e eficaz possível, o que significa chegar a uma decisão sobre quem fica com o quê, conseguir executá-la reivindicando os bens do perdedor e de preferência fazer tudo isso de maneira definitiva, que não dê ensejo a novas ações judiciais no futuro. O caminho paralelo é usar a violência para conseguir a reparação do agravo e quem tem acesso a armas de fogo faz isso sumariamente, com consequências muitas vezes trágicas para si e para os outros.

    No entanto, paralelamente às respostas práticas que damos quando nos sentimos injustiçados, há respostas mais abstratas. Pois o fato é que nem sempre a resposta do Judiciário será suficiente para que a pessoa se sinta desagravada. E descartando-se o recurso à violência coloca-se a questão de como lidar com a frustração de ver-se privado daquilo que a pessoa considera como seu de direito. Essas respostas mais abstratas resumem-se a uma simples palavra: fé, ou se preferirem crença. Explico-me citando o caso de Sócrates, condenado a tomar cicuta em 399 a.C. por não reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado (no caso a cidade de Atenas), por introduzir divindades novas e por corromper a juventude. Obviamente o filósofo defende-se dessas acusações perante os jurados, mas eles não se deixam convencer. Após o julgamento, Sócrates, preso, aguarda a execução da sentença de morte. Seus amigos o exortam a fugir e assim salvar a vida, mas ele se nega a fazê-lo por causa de suas convicções. E que convicções são essas?

    Conforme os trechos que abrem este artigo, Sócrates tem fé na justiça, isto é, que de uma maneira ou de outra o bom será recompensado e o mal será punido: sua crença não é na justiça dos homens, sujeita a erros por causa dos vícios inerentes à nossa natureza, mas na justiça como ideal a ser perseguido juntamente com os ideais de beleza, virtude e verdade. O exercício do pensamento leva ao conhecimento, inclusive da virtude e o homem que sabe o que é a virtude irá praticá-la. A saga humana consiste em seguir neste caminho de forma que mesmo que sejamos na prática injustiçados, que fiquemos à mercê das paixões dos que estão ao nosso redor e das nossas próprias paixões, possamos ficar cada vez mais perto desses ideais.  Sob essa perspectiva, a morte é um mero detalhe, pois o importante é que a justiça seja feita, que a verdade e a virtude triunfem e que a beleza prevaleça, aqui ou alhures.  E para que esses ideais sejam concretizados era preciso que Sócrates se submetesse às leis da cidade, pois “toda lei é descoberta e dádiva dos deuses”, como afirmou o político e orador ateniense Demóstenes (384 a.C.-322 a.C.)  no discurso Contra Aristogiton.

    A divindade e a justiça unidas: assim também era a concepção de Voltaire, conforme mostrada no trecho que abre este artigo. O escritor francês, que tanto atacou o Catolicismo, o Protestantismo e o Calvinismo, pode ser definido como um teísta, i.e. um homem que acreditava em um Deus que era uma inteligência consciente que elaborara e governava o mundo. Certo, era preciso levar o ser humano pelo caminho da razão, livrá-lo das crenças em coisas absurdas e inconsistentes como a transubstanciação, a mãe virgem de Jesus, o fato de Jesus ser descrito como descendente de David por intermédio de seu pai José que não era seu pai, afinal Jesus era filho de Deus. Era preciso livrar-se da classe parasita dos padres, bispos, cardeais e papas que exploravam a religião para proveito material próprio. Era preciso coibir a ação de fanáticos que torturavam, matavam e queimavam para defender a religião. No entanto, era preciso crer em um Deus bom e justo e se Deus não existisse ele teria que ser criado. Afinal, como lidar com a opressão dos mais fracos pelos mais fortes, com as calamidades que se abatiam sobre as pessoas, a miséria, a fome, as doenças se não pudéssemos crer que no longo prazo o bem triunfaria e o mal seria aniquilado? Que sentido dar à vida de outra maneira?

    E assim é que separados por 2.000 anos, Sócrates e Voltaire identificaram Deus como um ser justo que faz a justiça frutificar. Será que o sentimento da justiça não é tão inerente ao ser humano como o sentimento da transcendência? E se a justiça é um conceito tão fundamental, será que nos basta, no século XXI que o máximo que consigamos é ter um órgão que se propõe à mera solução de conflitos? Ou talvez valha a pena voltarmos às velhas narrativas da justiça divina, da justiça como uma deusa na qual é preciso ter fé e que precisa ser honrada?

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