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Progresso para quê?

Posted by on 21/02/2024

Papa Bento: O progresso no conhecimento, na ciência, nos confortos e no poder é só um progresso dos meios; se não houver a melhoria dos fins, objetivos ou desejos, o progresso é uma ilusão. A razão aprimora os instrumentos, mas os fins são determinados pelos instintos formados antes do nascimento e estabelecidos antes que a razão possa florescer.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981) em que o escritor francês Voltaire (1694-1778) tem um diálogo fictício no Elísio com o papa Bento XIV (1675-1758)

Rousseau havia dado expressão a um problema que aparece em qualquer sociedade avançada. Os frutos da tecnologia compensam a pressa, a tensão, a vista, os barulhos e os odores de uma vida industrializada? O esclarecimento prejudica a moralidade? É sábio seguir a ciência até a destruição mútua e a filosofia até o desencanto com as esperanças revigorantes?

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981) sobre o escritor e filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

    Prezados leitores, quem nunca ouviu falar na máxima que normalmente resume o pensamento de Jean-Jacques Rousseau, tal como ele nos é transmitido: “O homem é bom, a sociedade o corrompe”? Esse conceito de uma sociedade corruptora começou a ser esboçado pelo escritor e filósofo genebrino quando ele escreveu um ensaio para concorrer a um prêmio oferecido em 1749 pela Academia de Dijon, a qual propunha o seguinte tema: “A restauração das ciências e das artes contribuiu para corromper ou purificar a moral? Para responder a essa pergunta, Rousseau elaborou seu “Discurso sobre as artes e as ciências”, no qual ele aponta os males da civilização.

    A experiência de Rousseau com a civilização era marcada por sua estadia em Paris, cidade em que ele conheceu e frequentou o grupo dos philosophes que criticavam a Igreja e propunham a organização da sociedade sobre bases racionais. Como vimos na semana passada, o escritor e filósofo genebrino era uma alma sensível, sensível ao ponto de indignar-se tremendamente com o comportamento de um aristocrata francês, o Conde Pierre-Auguste de Montaigu, que não lhe pagara o salário, mas que apesar de seu comportamento lamentável continuava gozando de respeitabilidade na sociedade porque sabia seguir as regras da etiqueta, da polidez, da civilidade.

    Sob essa perspectiva, a reputação da pessoa em uma sociedade sofisticada como a francesa era baseada na mais pura artificialidade. As pessoas trocavam fórmulas polidas entre si como se tivessem grande estima umas pelas outras, mantinham uma aparência elegante, à base de perucas e roupas bem talhadas, como se fossem todas belas de corpo e de alma. Nada mais longe da verdade. Aquela fachada reluzente formada por palavras bem ditas e figuras estilosas tinha atrás de si a corrupção moral, a licenciosidade incentivada pela sensualidade da arte, a obsessão com a fofoca maliciosa e as tiradas inteligentes e irreverentes, o esnobismo social, as extravagâncias indiferentes dos ricos financiadas pela extorsão dos pobres. De que adiantava o exercício da razão se isso levava à dessecação da alma, perdida nos becos sem saída das especulações filosóficas que não chegavam a certeza nenhuma e tornavam o homem desiludido a respeito do significado da sua vida e do seu destino?

    A solução para Rousseau era uma volta à simplicidade do campo, à vida rústica e autêntica dos camponeses da sua Suíça natal, terra de indivíduos livres, corajosos, resilientes face à diversidade, imunes aos canto da sereia da filosofia, da ciência, da literatura e da arte, porque estavam dedicados ao trabalho no campo que lhes dava sustento e prosperidade. Daí que a resposta dada pelo “Discurso sobre as artes e as ciências” à pergunta colocada pela Academia de Dijon foi que a restauração das ciências e das artes contribuiu para corromper a moral, tornando as pessoas hipócritas, fazendo-as perder a paz de espírito pelo abandono das antigas crenças religiosas e a inocência pelo aumento da complexidade das interações humanas, que incentivava comportamentos malévolos.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, Rousseau revelou o lado negro da civilização. É certo que ela proporciona mais conforto material, liberando certos grupos para se dedicarem a ter ideais mais sofisticadas que levam a novas invenções, que por sua vez aumentam o conforto material, perpetuando o círculo virtuoso. Mas será que tudo isso vale a pena se pensarmos no custo em termos de deterioração das relações humanas em um ambiente competitivo e hipócrita em que o importante é ter sucesso e brilhar a qualquer custo? Onde fica o sentimento, o amor, a amizade nesse desfile de vaidades? E mais, onde fica a fé cristã, que havia sido o baluarte da sociedade por centenas de anos?

    O perigo do progresso para a alma do homem também é colocado pelo Papa Bento XIV (1675-1758) na sua defesa da religião frente à Voltaire (1694-1778), conforme a versão de Will e Ariel Durant. Conforme o trecho que abre este artigo, o problema de uma sociedade em que não há religião instituída é que a razão só permite a progressão dos meios de que dispõe o homem para atingir seus objetivos. Para o Papa a razão jamais conseguirá aprimorar os fins a que nos propomos, porque esses fins são instintivos. Daí ser o papel da religião estabelecer tais fins, impondo restrições a esses instintos, pois do contrário a razão torna-se a prostituta dos desejos, isto é, serve ao desejo que se impõe com mais força, estabelecendo narrativas para justificá-lo e dar-lhe vazão.

    Prezados leitores, há alguns meses eu citei aqui neste humilde espaço o cientista político John Mearsheimer, que alertava para o fato de em pleno século XXI ainda não termos chegado a um consenso sobre como viver a boa vida, pois temos discordâncias fundamentais sobre valores. Nesse sentido, as palavras do Papa Bento XIV e as de Rousseau sobre os aspectos negativos do progresso mostram-se relevantes à luz dos acontecimentos atuais. Considerando a guerra na Ucrânia e a guerra em Gaza, que se desenrolam sem que nenhum princípio do direito internacional tenha podido ser aplicado até o momento, fica flagrante a discrepância entre nossos meios tecnológicos de destruição mútua e nossa capacidade de estabelecer relações saudáveis entre os diferentes povos. Será que nunca conseguiremos preencher essa lacuna? Será que nunca chegaremos a um consenso sobre o certo e o errado e sobre o significado da vida para juntos embarcarmos na mesma jornada? Se não conseguirmos, progresso para quê, se ele vai nos levar à hecatombe?

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