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Para inglês ver

Posted by on 26/11/2012

            Para inglês ver. Quem nunca ouviu essa expressão? Conformei apurei na internet: “segundo a maioria dos especialistas, a fonte mais provável data de 1831, quando o Governo Regencial do Brasil, atendendo as pressões da Inglaterra, promulgou, naquele ano, uma lei proibindo o tráfico negreiro declarando assim livres os escravos que chegassem aqui e punindo severamente os importadores. Mas, como o sentimento geral era de que a lei não seria cumprida, teria começado a circular na Câmara dos Deputados, nas casas e nas ruas, o comentário de que o ministro Feijó fizera uma lei só para inglês ver.”

            E assim começamos nossa tradição de fazer coisas para satisfazermos nossa boa consciência, ou para fazermos bonito frente aos povos do norte, em relação aos quais nos sentimos inferiorizados. Em 1888 a bondosa Princesa Isabel baixou a Lei Áurea como uma satisfação à opinião pública nacional e internacional. O que veio depois em termos de libertação dos escravos pode ser visto no dia-a-dia de nós brasileiros: os negros formam a maioria das empregadas domésticas, das moças da limpeza terceirizadas, enfim das ocupações sem prestígio social e mal remuneradas e formam a minoria dos médicos, funcionários públicos graduados, empresários. O principal meio de ascensão continua a ser ter a sorte de nascer com um talento excepcional, como os jogadores de futebol, ou ter a sorte de cair no gosto popular como pagodeiro,  puxador de samba, funkeiro ou coisa que o valha.

            Mas o exemplo de hipocrisia de que quero tratar aqui é o de nossa Constituição, a dita Constituição Cidadã como a chamava o desaparecido Ulysses Guimarães. Elaborada em 1988, apenas três anos depois de termos saído da ditadura militar, nossa lei maior teve como objetivo nos livrarmos do entulho autoritário, e permitir a construção de um Estado de Direito democrático que enterrasse de uma vez por todas a possibilidade de haver um novo período de exceção como os mais de trinta anos de chumbo passados desde 1964 até 1985.

            A pergunta que se coloca é: será que ela cumpriu seus objetivos, ou não passou de mera declaração de intenções? Aqui não estou nem a considerar a questão dos direitos sociais, saúde, educação, trabalho, moradia, e outros que ela enumera, porque teríamos uma resposta negativa muito óbvia que não merece que percamos tempo analisando. O que quero tentar descobrir é se realmente construímos um sistema funcional e para mim sistema funcional é aquele em que o direito do indivíduo é respeitado, de maneira que ele possa ter confiança no Estado, confiança de que quem cumpre a lei é recompensado e quem a desrespeita é punido. Esse é na minha opinião um requisito mínimo básico para podermos ter uma sociedade sadia, em que seja possível haver relações leais.

            Para afastar de vez o espectro de uma volta do regime autoritário a Constituição Federal estabeleceu uma série de prerrogativas do indivíduo em face do Estado, direito de ação, direto à ampla defesa, presunção da inocência. A respeito deste último princípio o inciso 57 do artigo 5º diz o seguinte: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Excelente princípio para evitar linchamentos prévios como o que ocorreu com os infelizes que trabalhavam na Escola Base e que tiveram suas vidas arruinadas pela acusação feita por um menino de que havia sido molestado, mas péssimo princípio quando levado ao pé da letra, como tem sido feito pelos tribunais superiores do Brasil.

            De fato essa é a razão porque o senhor Pimenta das Neves, que já foi condenado pela morte de sua ex-namorada, não vai para a cadeia. Como entre o início do processo penal até seu fim, ou seja, até a sentença contra a qual não cabe mais apelação (o chamado trânsito em julgado), há 21 recursos possíveis, ele não é considerado culpado e está aí soltinho da silva enquanto o pai da moça morta se consome de revolta e indignação. Na prática o princípio da presunção da inocência, belo para proteger presos políticos contra os excessos do Doi-Codi, faz da sentença de primeira e segunda instância um papel sem valor aplicável somente aos otários. Aos “expertos” garante-se a protelação da aplicação da lei ad infinitum. Expertos esses que não são criminosos políticos, homens que arriscam a vida na guerrilha, na vida clandestina, mas um simples covarde mal resolvido como o ex-diretor do Estadão que não sabia ouvir um não.

            E o que dizer do foro privilegiado dos membros do Congresso Nacional? É claro que sua inviolabilidade por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, como manda o artigo 53 faz sentido, porque a tarefa do membro do Legislativo é expressar a vontade do povo, seja ela qual for. As estultices do deputado Jair Bolsonaro podem repugnar aos bens pensantes, mas ele representa o pensamento de uma parcela considerável da população que é racista e homofóbica. O problema é que as garantias dadas pelo constituinte para fortalecer o Legislativo em face do Executivo acabaram por tornar deputados e senadores vacas sagradas intocáveis da nossa democracia. Nossa Constituição Cidadã estabelece em seu artigo 101 inciso I, alínea c que a competência para julgar deputados e senadores por infrações penais comuns é do STF e de acordo com o parágrafo terceiro do artigo 53 os membros do Congresso poderão sustar a ação. Ou seja, longe de dignificar o Legislativo pela proteção da pessoa do congressista, o que temos é a formação de uma máfia em que uns protegem os outros e se calam diante de suas safadezas mútuas. O parlamento, por obra e graça da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, em vez de se transformar na tal de caixa de ressonância do povo, se tornou um covil de ladrões ou como diria o Lula antes de ser picado pela mosca azul do poder, picaretas.

            Alguns dirão que o problema do envelhecimento da nossa Carta Magna era esperado, afinal ela foi feita há mais de 20 anos e por ser extremamente detalhada, acabou caducando. É verdade, o mal da datação das leis acomete qualquer entidade que adote um documento como fonte suprema. A Bíblia contém passagens que se forem levadas ao pé da letra são inaceitáveis hoje em dia, a Constituição dos Estados Unidos foi elaborada num momento em que o país nem sonhava em ser o Império que é, por uma confederação de Estados que decidiu criar uma União para se defender das tiranias externas.

            A tragédia no Brasil é que nossos mecanismos de atualização são muito falhos. Do Legislativo não é nem preciso falar, o povo elege Jáder Barbalho, Paulo Maluf, Roseana Sarney e quejandos, não há como confiar na nossa conscientização política. A saída teria que vir do Judiciário, mas os membros do STF se enamoraram de sua imagem de guardiões da Constituição e insistem sempre, ao menos a maioria deles, em uma aplicação dela que prescinde de qualquer tentativa de auferir o sentimento nacional. A decisão a respeito da não aplicação da lei da Ficha Limpa é o exemplo notório já comentado  no Montblatt da semana passada.

            Nesse sentido, o que é mais importante, seguir a lei tal qual foi redigida ou aplicá-la levando em conta o objetivo para o qual foi criada? Em suma, a pergunta que todo membro do Supremo deveria se colocar ao proferir cada decisão é: minha interpretação da Constituição cria um Estado mais justo ou ela simplesmente satisfaz minha vaidade de operador do direito que se vangloria de imaginar um Estado de Direito ideal, feito para os “ingleses” nos acharem direitos porque aplicamos a lei, mas sem consideração à situação fática? O Estado de Direito que estamos pondo em prática no Brasil serve os interesses de quem? Do povo ou dos donos do poder que com esse apego excessivo à Constituição como se fossem os Doze Mandamentos só fazem com que o Estado seja cada vez mais injusto e elitista, beneficiando aqueles que têm dinheiro e que se valem do devido processo legal e condenando os menos afortunados a não participarem da festa democrática, que acaba sendo uma grande suruba digna de Sodoma e Gomorra.

            Talvez no futuro cheguemos a um momento em que certos de que não mais voltaremos à ditadura nossos aplicadores da lei deixarão de cultivarem a Constituição como um fetiche, mas passarão a vê-la como um meio, meio este que pode até ser mudado no caminho, pelo voto da maioria. Meio para se chegar a um fim, o verdadeiro Estado democrático de Direito, para brasileiro ver e dele participar. Oxalá esse dia chegue logo.

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