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Circularidades

Posted by on 08/08/2022

Quando os paradigmas são introduzidos, como devem ser, em uma discussão sobre a escolha de paradigmas, o papel deles é necessariamente circular. Cada grupo utiliza seus próprios paradigmas para argumentar na defesa dos seu paradigma. […] No entanto, qualquer que seja sua força, o status do argumento circular limita-se à força da persuasão. Ele não pode tornar-se convincente do ponto de vista lógico ou mesmo probabilístico para aqueles que se recusam a entrar no círculo.  As premissas e valores compartilhados pelas duas partes no debate sobre os paradigmas não são suficientemente abrangentes para isso.

Trecho retirado do livro A Estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo americano Thomas Kuhn (1922-1996)

O perigo em uma democracia é este: do que depende a democracia? A democracia depende de o eleitor individualmente tomar uma decisão inteligente e racional sobre o que ele considera seu interesse próprio esclarecido em todas as circunstâncias.

Trecho retirado de uma entrevista dada em 1958 pelo escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963) ao jornalista americano Mike Wallace (1918-2012), em que Huxley compartilha suas visões e apreensões sobre o admirável mundo novo do aumento da população, das comunicações e da tecnologia e os impactos disso sobre a liberdade dos cidadãos

    Prezados leitores, na semana passada eu tentei explicar o modo como a ciência se desenrola na prática à luz da descrição feita por Thomas Kuhn, que em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, faz uso do seu conhecimento da história da ciência, particularmente da química, da física e da astronomia, para ilustrar seu ponto. Estabelecem-se paradigmas que permitem que a ciência normal se desenvolva. O desenvolvimento das pesquisas e das experimentações levam ao surgimento de exceções às teorias pressupostas pela ciência normal, o que leva a um estado de crise, que só é superado quando novos paradigmas surgem e se consolidam que dão conta das exceções e as normalizam, abrindo novos caminhos para o empreendimento científico. Nesta semana, meu objetivo é explorar um pouco mais a etapa em que há uma disputa entre diferentes paradigmas sobre os quais a comunidade científica ainda não chegou a um consenso, de modo a traçar uma analogia com outro campo da atividade humana.

    Conforme explica Thomas Kuhn, quando a crise se instala e há um mal-estar sobre a inadequação dos paradigmas vigentes para lidar com as anomalias que surgem, o advento de um novo arcabouço teórico, que permita aos cientistas estabelecer os problemas a serem resolvidos e o modo como resolvê-los, não é simples. Há uma disputa entre paradigmas, que não pode ser resolvida pelas partes envolvidas recorrendo a uma instância superior que decida qual é o melhor paradigma. E a razão de não haver tal órgão adjudicatório, segundo o filósofo americano, reside na própria natureza desses paradigmas em choque, conforme explicada no trecho que abre este artigo: eles têm uma natureza circular, pois para aceitá-los e deixar-se convencer, não é suficiente recorrermos aos dados experimentais e à probabilidade de uma ou outra proposição, porque tanto os dados experimentais quanto as proposições existem no próprio seio da estrutura teórica estabelecida pelos paradigmas em conflito. As premissas e valores propostos por um paradigma determinam aquilo que o cientista enxerga no mundo, aquilo que ele colocará como questões a serem respondidas, os métodos que ele utilizará para responder a tais questões e proporcionar resultados.

    Para ilustrar essa disputa entre paradigmas, Kuhn descreve os conceitos diferentes de Galileu Galilei, físico e astrônomo italiano (1564-1642) e de Aristóteles, o filósofo grego (384 a.C. – 322 a.C.), para explicar um corpo que balança. Para Aristóteles, que considerava que todo corpo tem uma tendência inerente à sua própria natureza de mover-se de uma posição mais alta para um estado de repouso em uma posição mais baixa, tal corpo estava simplesmente caindo com dificuldade e com base nesse conceito, as propriedades que deveriam ser pesquisadas diziam respeito ao seu peso, ao seu tamanho, à distância que faltava para chegar ao seu destino final, que era local da interrupção do movimento e à velocidade média da trajetória. Galileu, por seu turno, partia de outra hipótese teórica, surgida na Idade Média em função do trabalho dos filósofos escolásticos Jean Buridan (1301-1358) e Nicolau de Oresme (1323-1382): todo corpo tinha um poder interno nele implantado pelo agente que iniciou o movimento, de forma que o corpo apresentaria movimento contínuo. Inspirado por essa teoria do ímpeto, Galileu via um corpo que balança como um pêndulo, e tal pêndulo apresentava certos atributos, como amplitude, aceleração, distância em relação à origem e velocidade instantânea.

    Sob essa perspectiva, a escolha de um paradigma e não de outro tem implicações surpreendentes: ela determina aquilo que o cientista pressupõe como existente, e o mundo em que ele se insere como pesquisador. À luz de como a ciência é realmente praticada e como ela se desenvolve, a ideia de que os cientistas divergem apenas quanto à interpretação de dados objetivos não é verdadeira sempre. Nos momentos de crise e de disputa a respeito dos princípios que nortearão a prática da ciência normal, a divergência é mais profunda,  porque a depender do paradigma utilizado, os dados serão outros, pois o método de obtê-los depende das perguntas e dos instrumentos utilizados, e tais perguntas e instrumentos dependem de certos conceitos básicos que devem simplesmente ser aceitos para que a roda do empreendimento científico possa girar: para Aristóteles, o mundo era formado por corpos que tinham a tendência inerente a chegar ao repouso, para Galileu o mundo era formado por corpos que eram impulsionados por uma força que os levava a se movimentar.

    Pelo fato de a ciência apresentar essas premissas irredutíveis, Thomas Kuhn compara o processo de advento dos paradigmas necessários à prática da ciência normal a uma revolução política: toda mudança política requer uma mudança nos pressupostos básicos de funcionamento da sociedade, mudança essa que não surge no seio da estrutura institucional vigente, ao contrário ela surge quando a estrutura institucional está em crise e visões incompatíveis entre si disputam a proeminência sem que seja possível estabelecer critérios compartilhados por todos os membros da sociedade para escolher uma outra forma de organização. Assim como uma revolução política destrói os fundamentos sobre os quais a sociedade se organizava, a revolução científica destrói o arcabouço conceitual antigo e introduz um novo modo pelo qual os cientistas veem o mundo.

    Se a analogia entre o mundo da política e o mundo da ciência feita por Kuhn for levada às últimas consequências, teremos uma situação em que o estabelecimento de uma estrutura que permita o funcionamento de uma e de outra só é possível quando se atinge um consenso, isto é, chega-se a um acordo sobre os princípios fundamentais e as coisas podem voltar a funcionar de maneira normal porque cessam as disputas. Nesse momento, a ciência pode ser objetiva no sentido de que haverá procedimentos estabelecidos que darão resultados previsíveis e aceitos pela maioria dos seus praticantes, e a política pode ser racional, tal como vislumbrou Aldous Huxley em sua entrevista sobre as condições para o exercício de escolhas livres pelo cidadão em um regime democrático, conforme o trecho que abre este artigo. De posse de informações críveis, isto é, não manipuladas pela propaganda, e de posse de seu intelecto, o indivíduo em uma democracia escolhe quem irá lhe representar respondendo à pergunta: quem poderá atender melhor meus interesses, isto é, quem dentre os candidatos apresenta propostas de organização da sociedade que permitam que eu tenha uma vida próspera e segura no longo prazo?

    Prezados leitores, em que estágio estaremos no Brasil à luz do esquema proposto por Thomas Kuhn? Estaremos na fase da disputa feroz sobre os paradigmas, na qual as pessoas não se entendem porque falam de coisas diferentes? Ou já estamos sob a égide do consenso necessário à organização da sociedade? Será que a polarização nas eleições presidenciais deste ano entre um candidato de direita e de esquerda não é indício de que ainda não chegamos ao estágio de decidirmos racionalmente porque ainda não chegamos a um acordo sobre certos valores fundamentais? Que nível de consenso é necessário para que uma democracia funcione bem? Que nível de conflito pode ser tolerado em uma democracia para que ela não se desestruture? Talvez tenhamos essa resposta aqui no Brasil ao fim do ciclo eleitoral. Aguardemos.

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