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De Tartufo à família Roy

Posted by on 31/05/2023

Se nada mais do que o Céu atrapalha meus desejos, não custa nada para mim remover um tal obstáculo. É verdade que o Céu proíbe determinadas gratificações. Mas há uma maneira de resolver essas questões. É uma ciência esticar as cordas da consciência de acordo com as diferentes exigências do caso e retificar a imoralidade da ação pela pureza das nossas intenções.

Trecho retirado da peça Tartufo, escrita por Jean Baptiste Poquelin em 1664, conhecido como Molière (1622-1673)

[…] a preocupação precípua de Platão é mostrar como não há na poesia canônica, seja em Homero, em Hesíodo ou nos poetas trágicos, o discernimento entre o bem e o mal, justiça e injustiça, temperança e intemperança, na representação das ações de deuses e heróis. Como a “educação” grega (paidéia) se baseava eminentemente na poesia, isso teria uma consequência perniciosa do ponto de vista moral, pois é essa representação que serve de modelo de conduta moral para as ações particulares dos homens.

Trecho retirado do ensaio Platão e o Teatro, escrito por Daniel R. N. Lopes como introdução para sua tradução de Górgias, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Habitando esse universo, cujo centro é Nova York (com escapadelas para cenários paradisíacos e exclusivos na Itália, na Noruega ou na Escócia), estão personagens polifacetados, que seguem a tendência de complexidade cuja inauguração muitos atribuem à série “Família Soprano”, que a partir de 1999 apresentou mafiosos carismáticos. De lá para cá, os (bons) dramas ganharam esse adjetivo por retratarem pessoas ambíguas, que extrapolam as descrições de “bom” e “mau”, como qualquer ser humano.

Trecho retirado do artigo “Segredo de uma Sucessão”, escrito por Talita Duvanel e publicado na edição de O Globo de 28 de maio, sobre a série Succession, cujo último episódio seria veiculado naquele dia e revelaria quem seria o sucessor do conglomerado de mídia Waystar, criado pelo personagem Logan Roy

    Prezados leitores, nesta semana meu objetivo é o de falar de arte e do poder maléfico ou benéfico que ela pode ter sobre as pessoas. Para tanto, vou tratar da peça de Molière, “Tartufo”, e da série televisiva “Succession”, que mal acabou e já foi aclamada como a grande série de TV do nosso tempo, à luz das lições de Platão sobre o papel da poesia na pólis grega.

    A citação que abre este meu humilde artigo flagra Tartufo, o personagem principal da peça de Molière, tentando convencer Elmira, a mulher de Orgon a ir para a cama com ele. Orgon recebera Tartufo em sua casa como um amigo, pela admiração que nutria por aquele homem que assistia à missa todos os dias, rezava com os olhos voltados para o céu, beijava a terra. Mas Tartufo era um rematado hipócrita, como mostra sua fala ao objeto do seu desejo sexual: para acabar com os escrúpulos de consciência da mulher que receava trair o marido, Tartufo vem com uma obra-prima de casuística, a arte de achar boas desculpas para acomodar as características da natureza humana: já que era inevitável ceder aos apetites, melhor seria elaborar um argumento que permitisse ao pecador dar vazão à sua natureza e ao mesmo tempo ofuscar a imoralidade do ato sob o conceito da intenção pura do agente. Se a intenção era boa, o ato era moralmente inatacável, mesmo que violasse claramente os preceitos éticos preconizados pela Igreja.

    Essa exibição nua e crua de um homem que segue os ritos da religião para manter uma fachada respeitável que acoberte suas ações egoístas cotidianas chocou a sociedade francesa do século XVII, de tal maneira que o vigário de São Bartolomeu, Pierre Roullé, denunciou Molière como o demônio em carne e osso, um homem que fez troça da Igreja e que deveria ser queimado na fogueira como prenúncio do fogo do inferno que o ímpio e libertino escritor sofreria pela eternidade. Depois de sua primeira exibição em 12 de maio de 1664, “Tartufo” foi proibida e só voltou a ser encenada em 1667, depois que o rei da França, Luís XIV, deu sua permissão. Após uma nova proibição de encenação pelo Arcebispo de Paris, o rei retirou de uma vez por todas o veto e Tartufo começou a ser exibida em 1669.

    Se considerarmos o que Platão tinha a dizer sobre a poesia, conforme o trecho que abre este artigo, entenderemos melhor a indignação dos membros da Igreja Católica no século XVII. Mostrar um personagem que pratica imoralidades e que o faz com verve, inteligência e às expensas das pessoas de boa-fé que com ele convivem é enfatizar os elementos irracionais do homem, os seus apetites, materializando-os nos atos praticados pelo personagem. Para Platão, a arte deveria edificar o homem, oferecendo-lhes exemplos de retidão moral, isto é, de pessoas que agiam racionalmente controlando suas paixões e vivendo de maneira reta.

    Em suma, mostrar o errado repetidas vezes, por meio de personagens dominados pela raiva, pelo desejo de vingança, pelo desejo de causar mal gratuito a outros, acabava, segundo o filósofo grego, tendo um efeito nefasto sobre os espectadores das tragédias, os leitores das poesias épicas, pelo fato de naturalizar algo que deveria ser coibido, reprimido. Longe de nos fazer simpatizar com um pilantra como Tartufo, que engana a todos e nos faz rir, o artista deveria nos levar a cultivar as virtudes morais, mostrando-nos heróis com qualidades a serem imitadas.

    Ora como sabemos, em pleno século XXI, depois de uma Reforma Protestante, do Iluminismo e da Revolução Industrial, os pruridos religiosos e morais no mundo ocidental estão bem diminuídos. Dessa maneira, a concepção platônica de que a arte deveria desempenhar um papel na construção de uma sociedade melhor, com indivíduos retos do ponto de vista ético, ficou para trás. Uma peça como Tartufo, que mostra que o sentimento religioso exteriorizado em rituais pode ser uma grande hipocrisia, é considerada um clássico porque mostra a realidade tal como ela é. E uma série como “Succession” é considerada de alta qualidade porque, conforme o trecho que abre este artigo, não divide as pessoas em boas e más, de maneira maniqueísta.

    A essa altura, devo revelar que eu mesma acompanhei a série americana pelas razões expostas no artigo de Talita Duvanel. As peripécias de Logan Roy, o patriarca e magnata de um império de mídia, e de seus quatro filhos, Connor, Kendall, Shiv e Roman, me fizeram assistir a todos os episódios porque mostravam a manipulação que há nas relações humanas, o exercício do poder, a psicopatia de pessoas sem empatia pelo sofrimento alheio e que usam os outros para seus fins egoístas. Tudo isso me tocou porque a essa altura da vida já tenho experiência suficiente para ter tido contato com esse lado negro dos seres humanos. Por outro lado, o final melancólico, em que os quatro filhos vendem sua participação na empresa por serem incapazes de chegarem a um acordo entre si, me fez lembrar a lição de Platão. A história teria sido mais edificante se algum deles tivesse aprendido a lidar com as fraquezas próprias e alheias e tivesse conseguido manter o negócio nas mãos da família, mantendo assim o legado do pai. Mas em plena era de pós-verdade, seria muito pedir que os artistas da nossa época queiram ou achem conveniente passar uma mensagem moral aos espectadores.

    Prezados leitores, o realismo nos mostra a vida como ela é, mas o idealismo de Platão nos mostra uma vida possível, que pode nos encher de esperança. Por isso, entre Tartufo e a família Roy, prefiro uma terceira via, a de Michael Corleone, que se rebelou contra a herança siciliana e acabou tornando-se o maior líder mafioso, enchendo de orgulho seu pai, Vito Corleone. Não é uma via perfeitamente platônica, porque Michael como capo di tutti capi era um assassino implacável, mas talvez seja o caminho heroico possível nessa era descrente em que vivemos.

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