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tekhne ou a falta dela

Posted by on 14/06/2023

Isso eu chamo de adulação, e afirmo que coisa desse tipo é vergonhosa, Polo – e isto eu digo a ti – porque visa o prazer a despeito do supremo bem. Não afirmo que ela é arte, mas experiência, porque não possui nenhuma compreensão racional da natureza daquilo a que se aplica ou daquilo que aplica, e, consequentemente, não tem nada a dizer sobre a causa de cada um deles. Eu não denomino arte algo que seja irracional […]

Trecho de fala do personagem Sócrates em seu diálogo com Polo em “Górgias”, de Platão (428 a.C.-348 a.C.)

Estimular o transporte individual automotivo é realmente um passo atrás. Não importa se é elétrico ou não. O transporte público de massa é que precisa de apoio (do governo) – diz Frischtak sobre o programa do governo que vai gastar R$ 1,5 bilhão para desonerar carros, caminhões e ônibus (que ficam com a menor fatia, R$ 300 milhões

Trecho retirado do artigo “Quase Parando”, publicado no jornal O Globo em 11 de junho sobre a carência de investimentos públicos para mobilidade

    Prezados leitores, na semana passada eu fiz um contraponto entre a razão pragmática de Cálicles, um dos interlocutores de Sócrates no diálogo Górgias, e a razão que denominei tartufiana. Esta, visando achar argumentos para justificar comportamentos moralmente condenáveis, aquela visando achar argumentos fazer o indivíduo engajar-se nas discussões políticas, permitindo-lhe tomar parte ativa nas decisões nas assembleias. Nesta semana, dando prosseguimento aos estudos socráticos realizados neste humilde espaço, pretendo explorar a dicotomia que Sócrates faz entre arte ou tekhne e a adulação, de modo a lançar luz sobre nossas práticas democráticas na ágora tupiniquim.

    Para melhor explicar a diferença entre as duas a seu interlocutor, Polo, Sócrates faz uma analogia com dois pares de atividades, a medicina e a culinária, e a ginástica e a indumentária. A medicina e a ginástica estariam no domínio da arte e a culinária e a indumentária estariam no domínio da adulação.  

    A medicina é arte porque ela visa um bem supremo, a saúde, e para tanto elabora um discurso (o logos) que explica as causas das doenças, as dietas apropriadas para ter uma vida saudável e os remédios para curar os males que afligem os indivíduos. Há, portanto, uma correspondência entre o objetivo nobre de descobrir como ter e manter a saúde e a busca da verdade sobre como as doenças se desenvolvem no nosso corpo.

    O antípoda da medicina é a culinária, que nada mais é do que uma adulação, conforme o trecho que abre este artigo. Seu objetivo não é o de promover a saúde, mas de proporcionar prazer ao consumidor da comida. O discurso produzido pelo cozinheiro sobre o modo de preparo dos alimentos não é logos no sentido filosófico do termo, pois não visa o entendimento dos fenômenos do mundo por meio da razão, procurando determinar-lhes a natureza e os mecanismos que os geram. A culinária é uma atividade prática, um hábito, uma experiência que pode ser transmitida de um cozinheiro a outro, mas que sempre se repete da mesma forma.

    Nesse diapasão, a ginástica é arte porque ela tem um objetivo nobre que é o de manter os corpos saudáveis e em funcionamento, e para tanto ela desenvolve modos de exercitar o corpo investigando como este pode ser movimentado de maneira que se torne mais forte e resiliente. Já a indumentária é mera adulação, pois ela com suas cores, figuras e vestes faz com que o corpo pareça algo que ele não é, embelezando-o de maneira artificial e por isso efêmera.

    Percebe-se por meios desses dois contrapontos feitos por Sócrates a distinção que o filósofo faz entre a arte, a tekhne de um lado, e a adulação ou experiência de outro. Na primeira estamos no domínio do bem, da racionalidade, do conhecimento adquirido pela aplicação do intelecto a serviço de um fim ético. Na segunda estamos no domínio do prazer, da irracionalidade, da falta de conhecimento, pois o que há é somente uma experiência sem fim ulterior e sem a sistematização proporcionada pelo estabelecimento de causas e efeitos.

    À luz dessas analogias, fica clara a distinção entre a justiça, que deve ser o supremo objetivo da prática política, e a retórica, que se dedica a adular os espectadores dos debates na assembleia ateniense de modo a convencê-los a votar a favor de determinado curso de ação. Dar a cada um o que é seu exige tekhne e não experiência, pois exige o conhecimento das causas dos problemas da sociedade, o porquê de alguns terem pouco e outros terem muito, o porquê de alguns terem mais oportunidades de desenvolver seus talentos do que outros.  A retórica, ao contrário, não exige conhecimento sobre o objeto do seu discurso, além daquele que seja necessário para angariar a simpatia dos ouvintes. Basta ao rétor parecer ter algum conhecimento que impressione os que têm menos conhecimento do que ele e agradar de qualquer forma possível, incluindo o apelo às emoções e o elogio da plateia.

    Considerando tais distinções, o que pensar da medida mais ruidosa da política industrial lançada pelo governo federal, qual seja, a de conceder isenções de PIS e COFINS aos chamados carros populares, que atualmente no Brasil custam no mínimo 69.000 reais. Será que foi feito um cálculo se e em que medida a renúncia de receita será compensada pelo aumento de vendas e pela geração de empregos na indústria automobilística? Será que os técnicos do governo analisaram a experiência passada com subsídios dados à indústria automobilística e os resultados concretos que foram obtidos para a economia do país? Será que eles conseguem dar uma explicação plausível sobre a razão econômica para dar ajuda financeira a um setor e não a outro?

    De acordo com a Receita Federal, as montadoras deixaram de pagar 69 bilhões de dólares entre 2000 e 2021. A Ford encerrou suas atividades fabris no Brasil em 2021, depois de ter recebido incentivos do governo estadual para instalar uma fábrica em Camaçari, na Bahia e portanto, o dinheiro do povo brasileiro investido na companhia norte-americana não foi recuperado. De acordo com o artigo citado na abertura deste artigo, em 2022 foram investidos pelo Estado R$ 4,1 bilhões em mobilidade urbana, ao passo que no mesmo ano o setor automotivo já havia se beneficiado de isenções tributárias de R$ 8,8 bilhões. Há, portanto uma clara preferência pelo transporte individual em detrimento do transporte público e uma distribuição de benesses cujas contrapartidas são duvidosas.

    Qual a razão disso? Qual a arte por trás desses benefícios concedidos a um setor específico? Por acaso toda essa dinheirama ao longo dos anos rendeu frutos que amortizaram o investimento feito, na forma de bens econômicos, isto é, cadeias produtivas desenvolvidas, empregos, geração de renda? Será que a relação custo benefício foi favorável? Ou os subsídios à indústria automobilística tiveram o intuito de satisfazer determinados interesses que sabem se fazer representar nos corredores do poder por lobistas, por federações classistas? E o governo Lula agora, dando ainda mais vantagens? Será que o foco é parecer fazer alguma política industrial? É lançar medidas de impacto para agradar uma parte do eleitorado com a qual o presidente se identifica, os metalúrgicos?

    Prezados leitores, a tekhne e a falta dela são pertinentes para a democracia. Por mais que o ideal socrático/platônico de uma república governada pelos possuidores do conhecimento possa, na pior das hipóteses, ser uma utopia totalitária, é sempre bom termos um parâmetro de julgamento das imperfeições da prática política para que possamos criticar e melhorar. Esperemos que no futuro haja no regime político brasileiro mais tekhne e menos adulação.

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