browser icon
You are using an insecure version of your web browser. Please update your browser!
Using an outdated browser makes your computer unsafe. For a safer, faster, more enjoyable user experience, please update your browser today or try a newer browser.

Arte para quê?

Posted by on 23/03/2024

Sócrates: E quanto à mais solene e admirável delas, a poesia trágica, pelo que ela zela? Seu intento e zelo são, segundo teu parecer, apenas deleitar os espectadores, ou também defendê-los, evitando pronunciar o que lhes for aprazível e deleitoso, porém nocivo, e dizendo e cantando o que não lhes for aprazível, porém benéfico, quer isso lhes deleite ou não? A poesia trágica te parece dispor-se a quê?

Cálicles: É evidente, Sócrates, que ela está volvida, sobretudo, ao prazer e ao deleite dos espectadores.

Sócrates: Então, Cálicles, não é isso o que há pouco afirmávamos ser a adulação?

Cálicles: Com certeza.

 

Trecho retirado do diálogo Górgias de Platão (428 a.C.-347 a.C.), na tradução de Daniel R. N. Lopes

Introduzir em uma cidade famosa por sua moralidade puritana uma forma de entretenimento que em quase todos os lugares havia glorificado a imoralidade? As tragédias quase sempre representavam um crime; elas não purgavam as paixões, como pensava Aristóteles; elas inflamavam as paixões, especialmente o sexo e a violência. As comédias raramente representavam o amor do casamento saudável; frequentemente elas riam da virtude, como mesmo Molière tinha feito em “O Misantropo”. Todo mundo sabia que os atores levavam vidas imorais e desregradas, e que a maior parte das atraentes atrizes da cena francesa eram modelos de promiscuidade, servindo como centros e fontes de corrupção em uma sociedade que as idolatrava.

 

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a luta do filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) para que não houvesse a legalização da atividade teatral em Genebra, sua cidade natal

    Prezados leitores, na semana passada lancei aqui neste meu humilde espaço mais uma das minhas perguntas sem resposta, indagando se a classe média no Brasil conseguirá praticar a virtude o suficiente para fazer o país andar em meio à corrupção e à violência geradas pelo crime organizado. Nesta semana, falarei de um outro aspecto da virtude, desta vez não relacionado às nossas transações cotidianas com empresas. Falarei da virtude em termos de comportamento moral do indivíduo nas suas relações pessoais. Será que existe em nossa sociedade um padrão a ser seguido sobre como namorar, casar, educar filhos? Ou o padrão é a quebra de padrões? Quem dita os padrões? Para responder a essas perguntas, voltarei ao passado para buscar momentos na história ocidental em que essas questões foram abordadas sob o prisma da influência – benéfica ou maléfica – da arte sobre o comportamento das pessoas.

    Um primeiro momento deu-se na Grécia antiga, nos séculos V e IV a.C. quando pensadores como Platão refletiram sobre a natureza da arte e sua função na sociedade. Conforme o trecho que abre este artigo, que toma como exemplo a poesia trágica, a arte é adulação. Seu objetivo é fazer o espectador ter uma experiência de prazer momentâneo, seja ao ouvir versos declamados, a melodia de uma música, ou assistir à atuação de um ator. Nesse sentido ela não é tekhne, a técnica que imprime certa forma à matéria com que trabalha, dando-lhe ordem e harmonia e expressando conhecimento sobre o que é o bem supremo para alma.

    A arte enquanto adulação não se preocupa com o que é benéfico para o indivíduo em termos do aprimoramento pessoal para agir eticamente, ela apenas lhe proporciona deleite que pode até ser benéfico para a alma, mas nesse caso é mera coincidência: não havendo tekhne por trás da adulação artística não há busca do conhecimento para fazer melhor e em fazendo melhor trilhar o caminho da virtude (arete). Portanto, para o Platão dos primeiros diálogos em que ele coloca Sócrates como um dos personagens, a arte, não sendo tekhne, não é verdadeiro conhecimento, pois o conhecimento está sempre associado à virtude: basta termos conhecimento do bem para praticarmos o bem. A arte é um esforço de tornar a pessoa feliz por um momento, não de torná-la sábia e portanto, virtuosa.

    Um segundo momento de reflexão sobre a função da arte deu-se no século XVIII, quando o movimento filosófico do Iluminismo pregava a liberdade de expressão e de pensamento, o que incluía a liberdade não só para os filósofos proporem seus sistemas metafísicos, mas para os artistas criarem e se exibirem. Ironicamente, Jean-Jacques Rousseau, apesar de ter frequentado os “philosophes”, como Diderot, D’Alembert e Voltaire, proponentes do triunfo da razão sobre a superstição, seguiu uma trilha oposta, enfocando os sentimentos e a subjetividade do indivíduo. Não crendo muito no poder da razão para ditar regras morais, o filósofo e escritor nascido em Genebra via o lado negro dessa liberdade: as pessoas poderiam usar seus recém-adquiridos direitos de livre pensar para justificar seus atos sórdidos ou pior, evitar que eles fossem detectados.

    Daí sua luta contra a abertura de teatros em Genebra, como queriam os “philosophes”. Conforme o trecho que abre este artigo, deixar que dramaturgos e comediantes retratassem criminosos e devassos para que eles tivessem a liberdade de se expressar e os espectadores de se divertir era um incentivo à imoralidade: a exibição de certos comportamentos acabava naturalizando-os e a aura que cercava os artistas, paradigmas da liberdade e da tolerância, acabava fazendo com que as pessoas os idolatrassem, mesmo diante do comportamento desregrado deles. Em suma, para Rousseau, o absolutismo da razão, proposto pelos “philosophes”, não ancorada em uma fé religiosa que estabelecesse as regras morais, fazia da criação artística, fruto da liberdade de pensamento que os cultuadores da razão propunham, um veículo para estimular o mau comportamento das pessoas pela mera imitação do que viam e ouviam.

    Prezados leitores, independentemente de discordarmos ou não das ideais filosóficas de Rousseau, sua constatação da influência da arte e dos artistas sobre os espectadores e ouvintes não é pertinente nos dias atuais, 300 anos depois? Os criadores em nossa sociedade não gozam de uma reputação especial justamente por terem a virtude máxima de desafiar os paradigmas sobre casamento, vida em família, relacionamentos amorosos? As pessoas não discutem as peripécias dos participantes de programas como o BIG BROTHER como se fossem algo autêntico e não encenado? Não há colunistas em jornais que analisam os episódios do BIG BROTHER? Nossos artistas não são chamados a opinar sobre tudo na grande mídia, incluindo políticas de saúde, políticas demográficas, políticas previdenciárias e políticas econômicas? Afinal o que é falar da liberação da maconha ou da cannabis? O que é falar sobre o direito ao aborto, o direito à mudança de sexo, e a arranjos familiares alternativos senão estabelecer princípios para tais políticas? Será que Rousseau não foi presciente ao observar a influência que os artistas, livres para pensar e criar e exibir-se teriam no comportamento das pessoas, ditando padrões mesmo que isso signifique a liberdade individual suprema de estabelecer seus próprios padrões?

    Enquanto o prestígio dos artistas aumentou exponencialmente nestes 300 anos, a arte que de tão livre, ficou tão adulatória, parece perder qualquer pretensão de ser algo mais do que mero entretenimento. Oxalá possamos recuperar o ideal platônico da tekhne e ela tenha mais a fazer por nós do que reforçar nossos comportamentos e nos mostre um novo conhecimento, uma nova virtude, uma nova areté.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *