Paraíso celeste, terrestre… e agora?

Voltaire: […] Mas eu tenho minha fé também – que no longo prazo, a verdade será uma benção até mesmo para os pobres.

Bento: a verdade não é verdade a não ser que permaneça verdade através das gerações. As gerações passadas colocam você no pedestal, as futuras gerações irão criticá-lo. Mesmo os vitoriosos na luta pela vida o reprovarão por tirar dos pobres as esperanças que os reconciliavam com sua posição humilde na estratificação inevitável de qualquer sociedade.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981) em que o escritor francês Voltaire (1694-1778) tem um diálogo fictício no Elísio com o papa Bento XIV (1675-1758)

Se lhe falta dignidade, sem elevação da alma, é porque a nobreza dispensa tudo isso; caso ele se associe com tudo o que é vil em uma das cidades mais imorais, é porque seus antepassados criaram honra suficiente para ele; se ele se junta a velhacos, se ele mesmo é velhaco, se ele não paga os salários de um serviçal dele, ah, então Madame, eu considero quão afortunado é não ser o fruto das próprias realizações! Esses ancestrais – quem eram eles? Pessoas sem reputação, sem fortuna, meus semelhantes; eles tinham algum tipo de talento, conquistaram fama; mas a natureza, que lança a semente do bem e do mal, deu-lhes uma descendência lamentável.

Trecho de carta enviada pelo escritor e filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a Madame de Benseval para reclamar do seu patrão, o embaixador da França em Veneza, o Conde Pierre-Auguste de Montaigu

    Prezados leitores, na semana passada eu tentei estabelecer semelhanças entre as concepções de justiça de Voltaire e de Sócrates (470 a.C.-399 a.C) chamando a atenção para o fato de que ambos associam a justiça à divindade. Para Sócrates, e para seus conterrâneos, os quais compartilhavam as mesmas crenças religiosas, a deusa Têmis ofereceu aos homens as leis como uma dádiva para que eles pudessem organizar-se em sociedade e assim, exercerem atividades tipicamente humanas. Para Voltaire, um dos atributos da divindade deve ser a de ser justo pois se nós, seres humanos, não tivermos a esperança de que ao final os bons serão recompensados e os maus punidos por Deus fica difícil conseguir lidar com as vicissitudes da vida e seguir em frente, apesar dos pesares.

    Nesta semana, adicionarei uma nuance ao pensamento de Voltaire, pois em que pese ele querer crer em uma justiça divina, ele crê muito mais intensamente na possibilidade de progresso na terra, não no céu, no cultivo da verdade, do conhecimento, da tolerância, da liberdade de pensamento, no combate às superstições para que, no aqui e no agora, a vida melhorasse para todos, para que a sociedade não fosse dominada por uma ortodoxia de pensamento que, acumulando poder, impusesse sua visão da realidade a todos e decidisse sobre o que era justo e injusto com base nessa visão unilateral. É no contexto dessa luta contra as verdades estabelecidas, que sufocavam o indivíduo, que Voltaire criticou o poder da Igreja Católica e lutou por pessoas como Jean Calas (1698-1761), um protestante acusado injustamente de ter matado o filho e que foi condenado a uma morte de suplício, executada em 10 de março de 1762.

    Sob essa perspectiva, apesar de Voltaire cultivar a concepção de uma entidade divina justa, ele nunca identificava tal Deus com o Deus das religiões organizadas, justamente porque em nome de Deus as Igrejas enquanto instituições acabavam tratando de maneira brutal os indivíduos que ousavam não compartilhar dos seus dogmas. É por isso que o escritor francês discorda do papa Bento XIV no diálogo criado por Will e Ariel Durant e citado na abertura deste artigo a respeito do bem que a verdade faria aos pobres. Mesmo sendo eles pouco inclinados a pensar e incapazes de fazê-lo por lhes faltar instrução, Voltaire tinha a fé que a verdade faria uma diferença na vida dos pobres porque ela traria melhora nas condições materiais da existência e faria a ordem jurídica mais justa, menos tendenciosa em relação ao pensamento das elites dominantes que procuravam perpetuar seus privilégios, inclusive por meio das narrativas religiosas disseminadas na sociedade para justificar o status quo.

    Ora, o papa Bento XIV discorda dessa concepção de que o pensamento criativo dos filósofos e as descobertas da ciência fariam bem aos pobres. Para ele, a única verdade a ser transmitida aos pobres era a verdade da Igreja que dava consolo para pessoas que estavam destinadas a sofrer na vida, a não ter um quinhão adequado das benesses da sociedade. Para não as deixar cair no desespero ante a opressão dos poderosos, era preciso ensinar aos mais pobres que a justiça humana era inerentemente falha e que só a justiça divina era perfeita e estaria ao alcance dos bons depois da morte. Em suma, após o inferno terrestre da pobreza e da injustiça seguiria o paraíso celeste onde tudo seria retificado.

    É claro que Voltaire, como bom Iluminista, crente no poder da razão para engendrar prosperidade material e uma melhor aplicação da justiça humana, não poderia aceitar tal receita. Sua luta feroz pela revisão do processo de Jean Calas, que culminou com a anulação da condenação do mercador protestante em 9 de março de 1765, mostra que ele queria tornar a justiça humana cada vez melhor, na medida do possível. Não menos sensível às iniquidades neste mundo, fruto da ignorância e do exercício arbitrário do poder, era Jean-Jacques Rousseau.

    Em 1743 Jean-Jacques Rousseau torna-se secretário do embaixador da França em Veneza, o Conde de Montaigu que, segundo Rousseau, era quase analfabeto. Em 1744, o Conde o demite do posto após uma disputa entre os dois pelo fato de o embaixador não ter pago o salário do seu secretário, já que ele mesmo não recebera sua remuneração. Rousseau escreve uma carta à mulher que o havia indicado para o cargo, já que não consegue falar com ela pessoalmente. O trecho que abre este artigo mostra a indignação do escritor e filósofo, que não tinha nenhuma fonte de renda segura, com o comportamento de um membro da aristocracia. O que o conde de Montaigu havia feito para merecer os privilégios de que gozava? Que qualidades intelectuais ou morais ele tinha para ocupar o posto de embaixador?

    Para Rousseau, a resposta deveria ser negativa para ambas as perguntas. A diferença entre o Conde e Rousseau é que aquele havia tido a sorte de ter tido ancestrais que tiveram algum talento e conquistaram bens e direitos que puderem transmitir por décadas e até séculos aos seus descendentes. Nesse sentido, o sr. Pierre-Auguste não merecia usufruir dessa herança porque não tinha méritos próprios, mas usufruía porque a sociedade, cujas leis eram estabelecidas pela nobreza para seu próprio benefício, assim o permitia. Uma flagrante injustiça, sem dúvida porque um homem mau e incapaz era recompensado.

    Prezados leitores, essa indignação mostrada por Rousseau diante dos privilégios gozados por uma aristocracia que há séculos havia tomado o poder foi um dos germes da Revolução Francesa, a qual teve entre seus ideais estabelecer uma utopia na terra, isto é, uma sociedade justa, fundada na lei, na razão, no conhecimento, em contraponto à tirania, à injustiça e à ignorância. Se a utopia se concretizou na prática é uma outra questão. O fato é que, conforme Will e Ariel Durant observam em “A Idade de Voltaire” uma civilização morre se não cultivar a ideia seja de um paraíso terrestre seja de um paraíso celeste: sem nenhuma narrativa sobre um mundo melhor o esforço coletivo perde significado e seus atores perdem motivação.  Tanto Voltaire quanto Rousseau e o próprio papa Bento XIV criaram uma narrativa nova ou aprimoraram uma narrativa já existente, cada um a seu modo. Quem o faz agora no Ocidente em pleno século XXI?

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De Sócrates a Voltaire: Têmis Reloaded

Inclusive vocês, ó juízes, devem ser esperançosos quanto à morte, e ter em mente que a única coisa verdadeira é que ao homem bom, é impossível sofrer algum mal, quer em vida, quer depois da morte, e que suas vicissitudes não são negligenciadas pelos deuses.

Trecho retirado do livro “Apologia de Sócrates” de Platão (428 a.C.-348 a.C.) em que Sócrates dirige-se aos juízes que o condenaram à morte

Ora, devemos então conceber assim o homem justo: se ele vier a ser pobre ou doente, se lhe suceder algo aparentemente mau, essas coisas acabarão por se tornar um bem em vida ou depois da morte. Pois, certamente, o deus não negligencia quem almeje com empenho se tornar justo e, cultivando a virtude, assemelhar-se ao deus o quanto for possível a um homem.

Trecho retirado da República de Platão atribuído como fala de Sócrates (470 a.C.-399 a.C.)

Ele [o teísta] acredita que a religião não consiste nem nas opiniões de uma metafísica incompreensível, nem em decorações vãs, mas na adoração e na justiça. Fazer o bem é sua crença; submeter-se a Deus sua doutrina…. Ele ri de Loreto e de Meca, mas socorre o indigente e defende o oprimido.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981), citando o escritor francês François Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778)

Têmis – filha de Urano e de Gaia, Têmis pertence à geração dos deuses primordiais […] Ela é representada com uma balança e uma espada nas mãos (os símbolos da justiça). Mas sobretudo, seus olhos vendados permanecem o símbolo da imparcialidade das sentenças que ela profere.

Verbete retirado do Dicionário Larousse de Mitologia Grega e Romana

    Prezados leitores, o que fazer quando consideramos termos sido tratados de maneira injusta? O que fazer quando sentimos que não fomos tratados como seria o nosso direito e que não recebemos de volta aquilo que demos aos outros, seja de maneira quantitativa em termos de um simples toma-lá-dá-cá, seja de maneira qualitativa, em termos do modo respeitoso, cordial e amoroso com que tratamos os outros e do qual esperamos ser tratados? Essa é uma pergunta cuja resposta depende dos valores de cada um. No século XXI no Brasil, o caminho oficial é ir ao Judiciário, que tratará de solucionar o conflito entre você e seu “inimigo” da maneira mais rápida e eficaz possível, o que significa chegar a uma decisão sobre quem fica com o quê, conseguir executá-la reivindicando os bens do perdedor e de preferência fazer tudo isso de maneira definitiva, que não dê ensejo a novas ações judiciais no futuro. O caminho paralelo é usar a violência para conseguir a reparação do agravo e quem tem acesso a armas de fogo faz isso sumariamente, com consequências muitas vezes trágicas para si e para os outros.

    No entanto, paralelamente às respostas práticas que damos quando nos sentimos injustiçados, há respostas mais abstratas. Pois o fato é que nem sempre a resposta do Judiciário será suficiente para que a pessoa se sinta desagravada. E descartando-se o recurso à violência coloca-se a questão de como lidar com a frustração de ver-se privado daquilo que a pessoa considera como seu de direito. Essas respostas mais abstratas resumem-se a uma simples palavra: fé, ou se preferirem crença. Explico-me citando o caso de Sócrates, condenado a tomar cicuta em 399 a.C. por não reconhecer os deuses reconhecidos pelo Estado (no caso a cidade de Atenas), por introduzir divindades novas e por corromper a juventude. Obviamente o filósofo defende-se dessas acusações perante os jurados, mas eles não se deixam convencer. Após o julgamento, Sócrates, preso, aguarda a execução da sentença de morte. Seus amigos o exortam a fugir e assim salvar a vida, mas ele se nega a fazê-lo por causa de suas convicções. E que convicções são essas?

    Conforme os trechos que abrem este artigo, Sócrates tem fé na justiça, isto é, que de uma maneira ou de outra o bom será recompensado e o mal será punido: sua crença não é na justiça dos homens, sujeita a erros por causa dos vícios inerentes à nossa natureza, mas na justiça como ideal a ser perseguido juntamente com os ideais de beleza, virtude e verdade. O exercício do pensamento leva ao conhecimento, inclusive da virtude e o homem que sabe o que é a virtude irá praticá-la. A saga humana consiste em seguir neste caminho de forma que mesmo que sejamos na prática injustiçados, que fiquemos à mercê das paixões dos que estão ao nosso redor e das nossas próprias paixões, possamos ficar cada vez mais perto desses ideais.  Sob essa perspectiva, a morte é um mero detalhe, pois o importante é que a justiça seja feita, que a verdade e a virtude triunfem e que a beleza prevaleça, aqui ou alhures.  E para que esses ideais sejam concretizados era preciso que Sócrates se submetesse às leis da cidade, pois “toda lei é descoberta e dádiva dos deuses”, como afirmou o político e orador ateniense Demóstenes (384 a.C.-322 a.C.)  no discurso Contra Aristogiton.

    A divindade e a justiça unidas: assim também era a concepção de Voltaire, conforme mostrada no trecho que abre este artigo. O escritor francês, que tanto atacou o Catolicismo, o Protestantismo e o Calvinismo, pode ser definido como um teísta, i.e. um homem que acreditava em um Deus que era uma inteligência consciente que elaborara e governava o mundo. Certo, era preciso levar o ser humano pelo caminho da razão, livrá-lo das crenças em coisas absurdas e inconsistentes como a transubstanciação, a mãe virgem de Jesus, o fato de Jesus ser descrito como descendente de David por intermédio de seu pai José que não era seu pai, afinal Jesus era filho de Deus. Era preciso livrar-se da classe parasita dos padres, bispos, cardeais e papas que exploravam a religião para proveito material próprio. Era preciso coibir a ação de fanáticos que torturavam, matavam e queimavam para defender a religião. No entanto, era preciso crer em um Deus bom e justo e se Deus não existisse ele teria que ser criado. Afinal, como lidar com a opressão dos mais fracos pelos mais fortes, com as calamidades que se abatiam sobre as pessoas, a miséria, a fome, as doenças se não pudéssemos crer que no longo prazo o bem triunfaria e o mal seria aniquilado? Que sentido dar à vida de outra maneira?

    E assim é que separados por 2.000 anos, Sócrates e Voltaire identificaram Deus como um ser justo que faz a justiça frutificar. Será que o sentimento da justiça não é tão inerente ao ser humano como o sentimento da transcendência? E se a justiça é um conceito tão fundamental, será que nos basta, no século XXI que o máximo que consigamos é ter um órgão que se propõe à mera solução de conflitos? Ou talvez valha a pena voltarmos às velhas narrativas da justiça divina, da justiça como uma deusa na qual é preciso ter fé e que precisa ser honrada?

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Crimes sem castigo

Não se pense que, por afrontarem os padres como afrontavam, os habitantes da vila fossem menos religiosos. Ao contrário, era um povo temente aos céus, e capaz de manifestações tremendas para conseguir seus favores, como provam os testamentos da época, documentos de valor inigualável para jogar alguma luz nos desvãos das consciências da época. […] Vender índio, à luz do dia, com registro em documento, pouco se ousa, mas o repasse, nos atos sucessórios, é praticado sem constrangimento, e tem justificativa nos “usos e costumes da terra”

Trecho retirado do livro “A capital da solidão – Uma história de Sâo Paulo das origens a 1900” do historiador e jornalista Roberto Pompeu de Toledo

 

Ameaçando os homens com poderes invisíveis, eles [a Igreja e o Estado] força-os a sofrer em silêncio as misérias com as quais os poderes visíveis os afligem. Eles são levados a esperar que se concordarem em ser infelizes neste mundo serão felizes no próximo.

Trecho retirado do livro “O Cristianismo Exposto” do filósofo francês de origem alemã Paul Henri Dietrich dꞌHolbach (1723-1789)

 

DꞌHolbach rejeita a ideia cristão-voltairiana de que o homem nasce com o sentido do que é certo e o que é errado. A consciência não é a voz de Deus, mas do policial […] O melhor a que podemos aspirar é uma consciência formada por uma melhor educação, pelo hábito adquirido de olhar para os efeitos que nossas ações têm sobre os outros e sobre nós mesmos e por uma opinião pública mais saudável que um indivíduo inteligente hesitará em ofender.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981)

    Prezados leitores, na semana passada, para marcar a celebração dos 470 anos da cidade de São Paulo, lembrei da origem da cidade ligada às relações de amor e ódio entre os jesuítas, que no alto do morro do qual se avistavam os rios Anhangabaú e Tamanduateí celebraram uma missa em 25 de janeiro de 1554, os colonos e os índios. Naquela semana meu foco foi no lado do triângulo amoroso entre jesuítas e índios, que foram introduzidos na fé católica e na disciplina do trabalho nos aldeamentos invadidos e destruídos pelos colonos. Nesta semana retomo tais relações enfocando o outro lado do triângulo, isto é, as relações entre os colonos e os índios, os quais saíram da tutela dos padres e passaram para o domínio dos colonos. Meu objetivo é explorar o tipo de domínio e as consequências dele à luz das ideias do filósofo materialista e ateu d’Holbach, um dos colaboradores da Enciclopédia editada por Diderot (1713-1784) e d’Alembert (1717-1783).

    Como explica Roberto Pompeu de Toledo em sua história da cidade de São Paulo, as incursões militares dos bandeirantes pelo interior do país permitiram-lhes tomar para si a mão de obra indígena que estava sob a tutela dos jesuítas. Ela serviu a dois propósitos: o primeiro foi o de fornecer os braços para a prática da agricultura do trigo na cidade de São Paulo e arredores e o segundo foi servir como a infantaria dos grandes da terra em suas expedições de conquista. Esses braços dourados pelo sol da terra na prática eram propriedade daqueles que os tinham aprisionado ou daqueles que os haviam comprado dos caçadores de índios. Conforme o trecho que abre este artigo, é verdade que não se falava claramente que os índios pertenciam aos seus senhores, como se falava dos negros africanos comprados e vendidos como escravos, afinal a escravidão indígena era proibida por lei, pois considerava-se que os índios tinham alma. De qualquer forma, os índios eram citados nas disposições testamentárias dos colonos, o que mostra que como diria um advogado no século XXI, faziam parte do espólio do de cujus e eram objeto de sucessão hereditária.

    Em suma, na prática os nativos da Terra Brasilis eram tão cativos quanto os negros africanos e obviamente submetidos ao mesmo tratamento de trabalhos forçados e extenuantes na agricultura. E no entanto, os titulares da propriedade sobre esses recursos humanos não deixavam de ser tementes a Deus e a seguir todos os rituais da Igreja Católica, frequentando missas, participando de procissões, mandando rezar missas em prol da alma de parentes e de si próprios. Como conciliar essa observância estrita das regras exteriores da religião cristã e ao mesmo tempo violar cotidianamente a integridade física e espiritual dos aborígenes, forçando-os a extensas jornadas de trabalho às quais seu modo de vida anterior não os acostumara? Afinal o fato de os índios serem considerados seres com alma não os colocava em pé de igualdade com os brancos? Como explorá-los seja como bucha de canhão ou como trabalhadores agrícolas, semeando, carpindo e colhendo sob o sol tropical? É para resolver esta aparente contradição que recorro às ideias de d’Holbach.

    Conforme pode ser depreendido do trecho que abre este artigo, para o filósofo a Igreja e o Estado estão em conluio para estabelecer uma ordem social que garanta a preservação do poder das duas instituições. A Igreja ensina aos despossuídos, que não têm oportunidade de prosperar neste mundo porque nasceram no andar de baixo da sociedade, a tolerar a opressão terrena para conquistarem a felicidade no outro mundo. Sob o ponto de vista do Estado tal doutrinação é fundamental para garantir que os habitantes do andar de cima que controlam o governo possam viver à tripa forra impunemente, gozando dos seus privilégios sancionados pelos ensinamentos morais da Igreja. De acordo com d’Holbach, o ser humano não nasce com um senso moral inato, dádiva do Criador. A prova disso é o fato de o ser humano cometer as maiores barbaridades e justificá-las em nome da religião: se ele o faz é porque ele estabeleceu o que é certo ou errado não de acordo com uma bússola moral infalível, que não existe, mas de acordo com sua experiência, com uma educação e raciocínio distorcidos e com a corrupção dos costumes e da opinião pública engendrados pela concentração de poder e de riqueza nas mãos de poucos. Tal concentração torna os privilegiados insensíveis ao sofrimento dos pequenos e inclinados a chafurdar no vício e na luxúria.

    Não havendo como garantir um senso ético por meio da religião, que na verdade é só instrumento de manipulação dos que não têm pelos que têm muito, o melhor a fazer é incentivar o aumento do conhecimento pela educação para combater mitos tais como a vida após a morte e a imortalidade da alma e evitar a concentração da renda distribuindo terra aos despossuídos. Só assim o homem viverá em um meio adequado que lhe permita ter consciência de sua verdadeira natureza, das suas limitações e dos efeitos que suas ações têm sobre os concidadãos, permitindo-lhe melhorar seu comportamento em um ambiente menos desigual, em que a correlação de forças entre os diferentes grupos sociais é mais equilibrada. Sob essa ótica, a religião a serviço dos poderosos só reforça os maus hábitos das classes ricas, porque lhes dá uma justificativa moral para explorar os despossuídos como se elas estivessem fazendo o maior dos bens, em nome de Deus.

    Prezados leitores, uma lástima que as ideias do Barão de d’Holbach, que tanto inspiraram a Revolução Francesa, nunca tenham chegado às plagas tropicais. O resultado foram séculos e séculos de escravidão de indígenas e negros, de crimes sem castigo, tudo sob a fachada dos rituais religiosos praticados pelos ricos em benefício próprio. As consequências nós as vivemos até hoje e basta uma volta pelo centro histórico de São Paulo para observarmos o exército de despossuídos, descendentes daqueles que viveram nos aldeamentos jesuítas ou foram trazidos da África. Talvez algum dia nosso nível de educação e de prosperidade material seja suficiente para darmos o salto de qualidade de que fala d’Holbach e nos tornemos mais cônscios dos efeitos das nossas ações ao nosso redor e, portanto, mais éticos. Esperemos esse dia chegar sabendo que nem tudo pode ser feito em nome de Deus.

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O triângulo amoroso ou odioso de São Paulo

Os jesuítas, se não escravizavam, na acepção plena da palavra, não deixavam de praticar uma violência contra o índio ao tentar, bruscamente, impor-lhe valores como a monogamia, ou, mais que isso, ao tentar regular-lhe o cotidiano, dividindo-lhe o tempo em padrões por ele desconhecidos – hora do trabalho e hora da doutrina, hora do descanso e hora da oração. Sobretudo, não seria propriamente um ambiente de liberdade aquele que os jesuítas preparavam para os índios, cercando-os em aldeamentos e, também eles, obrigando-os aos trabalhos.

Trecho retirado do livro “A capital da solidão – Uma história de Sâo Paulo das origens a 1900” do historiador e jornalista Roberto Pompeu de Toledo

Debaixo do ponto de vista da Igreja repetimos que é forçoso reconhecer terem os padres agido com heroísmo, com admirável firmeza na sua ortodoxia; com lealdade aos seus ideais; toda crítica que se faça à interferência deles na vida e na cultura indígena da América – que foram os primeiros a degradarem sutil e sistematicamente – precisa de tomar em consideração aquele seu superior motivo de atividade moral e religiosa. Considerando-os, porém, sob outro critério – puros agentes europeus de desintegração de valores nativos – temos que concluir pela sua influência deletéria. Tão deletéria quanto a dos colonos, seus antagonistas, que, por interesse econômico ou sensualidade pura, só enxergavam no índio a fêmea voluptuosa a emprenhar ou o escravo indócil a subjugar e a explorar na lavoura.

Trecho retirado do livro “Casa Grande & Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987)

    Prezados leitores, nesta semana a cidade de São Paulo comemora 470 anos. Em homenagem à minha cidade retomo minhas caminhadas reais e espirituais pelo centro histórico que, como já expliquei aqui neste humilde espaço, não é assim tão repleto de prédios antigos como outras cidades brasileiras. Detenho-me sobre a enorme escultura do padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597), na praça da Sé, cercado dos índios que ele catequizou ou tentou catequizar. Os índios mostram-se sérios, contritos e humildes perante o padre, feliz em dedicar-se ao projeto da sua vida, que era espalhar a fé católica pelo mundo. Não há como pensar em São Paulo sem pensar que a cidade não teria sido criada e se desenvolvido sem o triângulo de amor e ódio estabelecido entre os jesuítas, os indígenas e os colonos.

    Roberto Pompeu de Toledo narra em sua história da cidade como os jesuítas tentaram se estabelecer na cidade para arregimentar os índios e colocá-los em um lugar confinado onde pudessem lhes inculcar os valores cristãos pelo trabalho e pela disciplina. O Pátio do Colégio é o local na cidade do primeiro aldeamento de indígenas, pois foi lá que se instalou a modesta casa que serviria de colégio dos jesuítas. A Ocorre que havia outros interessados no destino que se daria aos aborígenes brasileiros: homens como Fernão Dias Pais, Antônio Raposo Tavares, Manuel Preto, hoje chamados de bandeirantes, eram empreendedores que organizavam expedições de caça aos índios, marchando pelo interior do Planalto Paulista para conseguirem apreender aqueles que serviriam de mão de obra para atividades agrícolas e domésticas em uma cidade que não tinha pujança econômica suficiente para adquirir os negros comercializados nas cidades litorâneas. E nessa marcha eles bateram de frente com os aldeamentos criados pelos jesuítas no Guairá uma região que hoje é o oeste do estado do Paraná: a concentração de indígenas nesses locais fazia com que o apresamento fosse mais fácil do que tentar lutar com tribos que tinham capacidades militares: os jesuítas, desarmados, podiam ser colocados para correr se os chefes das expedições cercassem as aldeias e as atacassem com as flechas dos soldados dessas expedições, que eram indígenas, e com os bacamartes dos bandeirantes. E assim foi feito, de modo que já em 1637 as missões no Guairá haviam sido totalmente destruídas. O alvo seguinte passou a ser os aldeamentos criados pelos jesuítas na região do Tape, em uma área junto ao rio Uruguai, no que hoje é o estado do Rio Grande do Sul, também alvos da sanha destruidora dos bandeirantes. Como último capítulo do embate de jesuítas e colonos pelos índios, em 25 de julho de 1640, as oito vilas existentes na então capitania de São Vicente decidiram pela expulsão dos jesuítas.

    Este enredo que marca a história da cidade de São Paulo, de ondem partiam as expedições de destruição dos aldeamentos e de aprisionamento dos indígenas, pode ser contemplado no filme a Missão, de 1986, um drama histórico estrelado por Robert de Niro e Jeremy Irons que mostra como uma missão na região do rio Iguaçu foi dizimada pelos colonos. Ali estão os índios vestidos de batas cantando no coro da igreja, trabalhando nas oficinas de carpintaria e nas lavouras, guiados por padres que heroicamente tinham se arriscado de pés descalços, subindo cachoeiras e cruzando rios para fundarem suas utopias terrenas, em que os habitantes do Novo Mundo praticariam a religião cristã livres da corrupção que acometera a Igreja na Europa e que levara à Reforma Protestante. Em a “Missão” padres e índios resistem até a morte à cobiça cruel e assassina dos colonos, de modo que o filme expressa uma clara dicotomia: de um lado a luz representada pela vida na comunidade cristã, feita de oração, música e trabalho, de outro os portugueses e espanhóis que queriam pegar os índios a laço para fazê-los trabalhar seja nas minas de ouro e prata ou nas plantações. Mas será que tudo era assim preto no branco? Ou haveria cinquenta tons de cinza neste triângulo amoroso e odioso entre padres, índios e colonos?

    Em seu livro Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre mostra os detalhes desses diferentes tons. Conforme descreve o trecho que abre este artigo, é admirável o esforço dos jesuítas que se embrenharam em florestas, rios mares desconhecidos pelos europeus, sujeitos a doenças, a serem recebidos com uma saraivada de flechas por aqueles que tentavam cooptar. Por outro lado, é inegável, como Roberto Pompeu de Toledo também aponta em sua história de São Paulo, que o regime a que os jesuítas submetiam os aborígenes podia ser menos intenso do que o trabalho escravo para os colonos, mas não deixava de levar a um único lugar, a degradação material, cultural e espiritual dos aborígenes. Acostumados a viver nus e a tomar banhos de rio várias vezes ao dia, os índios foram obrigados, para o bem da moralidade cristã, a vestir-se, o que os levou a tornar-se sujos e a adquirir doenças de pele. Acostumados à autoridade dos chefes e ao sistema de vida comunal, foram submetidos à autoridade dos padres e a viver confinados nas aldeias, o que destruiu seus hábitos nômades. Polígamos, foram submetidos à monogamia cristã. E seus cantos de “agreste sabor” foram substituídos pelos cantos devotos, secos e mecânicos dos jesuítas, que só falavam de Nossa Senhora e dos santos, sem falar do amor. Para não falar das danças e festivais, totalmente suprimidos, privando-lhes de oportunidades de dar vazão a sua energia animal. Em suma, para Gilberto Freyre o tratamento dos jesuítas, cheios de boas intenções e por isso menos cruéis e mais condescendente do que os colonos, fez de qualquer forma os indígenas perderem a capacidade de criar sua própria cultura.

    Prezados leitores, julgamentos morais são sempre complexos, porque considerando que a humanidade não chegou a um acordo sobre os fundamentos da ética, não é possível estabelecer com certeza o que é certo e o que é errado. Heróis no filme a “Missão”, genocidas culturais e espirituais no livro “Casa Grande & Senzala, os jesuítas deixaram seu traço indelével no Brasil e na cidade de Sâo Paulo em particular. Se não for para dar-lhes viva em 25 de janeiro próximo, ao menos reconheçamos que sem o trabalho deles, sem suas disputas com os colonos, a cidade teria sido outra.

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Relíquias Vivas

Um dia Dostoievski se saiu com essa observação enigmática: “A Beleza salvará o mundo.” Que espécie de declaração é essa? Durante muito tempo fiquei convencido de que se tratava de meras palavras. […] Existe, entretanto, uma certa peculiaridade no conceito da arte: de fato, uma verdadeira obra de arte irradia uma força de persuasão absolutamente irrefutável, que obrigada até o coração mais endurecido a se render. É possível compor um discurso político aparentemente elegante e fluente, um artigo forte, um programa social ou um sistema filosófico baseados no mal-entendido e na mentira. O lado oculto e distorcido poderá não aparecer de súbito.

Trecho retirado do livro “Uma palavra de verdade” do escritor russo Alexander Solzhenitsyn (1918-2008)

Mas meu querido patrão, quem é que pode ajudar o próximo? Quem consegue penetrar em sua alma? A pessoa tem que ajudar a si mesma!

Trecho retirado do conto “Relíquia Viva” do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883)

Os colaboradores tinham uma visão muito simples da natureza humana, uma avaliação muito otimista da honestidade da razão, um entendimento muito vago da sua fragilidade, uma perspectiva muito otimista de como os homens iriam utilizar o conhecimento que a ciência lhes estava dando.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a Enciclopédia ou Dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios editada pelo escritor francês Denis Diderot (1713-1784) entre 1751 e 1772

Epifania – uma manifestação ou percepção normalmente repentina da natureza ou do significado essencial de algo

Trecho retirado do verbete de epifania da edição de 1966 do dicionário Webster’s

Prezados leitores, vocês já tiveram uma epifania, de acordo com a acepção descrita na abertura deste artigo? Eu já tive e vou descrever-lhes o momento para que possam analisar se já passaram pela mesma experiência. Meu momento de percepção de uma verdade fundamental veio ao ler o conto Relíquia Viva, já tratado neste humilde espaço em “De Diógenes a Lukeria”, em 2021. Relíquia Viva narra o encontro do dono de uma propriedade rural, que passara vários anos estudando em Moscou, e uma serva, Lukéria, a quem ele não via há muito tempo. Lukéria na sua mocidade havia sido “alta, roliça, branca, corada, amiga do riso, da dança e do canto”. Quando o patrão a encontra ela está entrevada em uma cama, após ter caído de uma certa altura, e dependente de pessoas que levem a ela o que comer. O patrão fica chocado com a aparência de múmia da serva e oferece levá-la para um hospital, para que ela tenha companhia e talvez possa curar-se.

O trecho citado na abertura deste artigo me levou ao meu momento epifânico: ele mostra a sabedoria e lucidez de uma mulher que tem a vida destruída por um acidente e que sabe que ela não pode esperar nada das pessoas. Seu ex-noivo a visita um dia, mas ele seguiu em frente, sem olhar para trás e casou-se com outra. A visita dele faz Lukéria chorar, mas isso não quer dizer que ela guarde rancor ou tenha raiva do mundo e da humanidade. A serva resigna-se com sua tragédia e aproveita a vida como pode, presa a uma cama: ouve o cantar dos pássaros e a miríade de sons da natureza. Tem uma vida mental intensa que compensa o cotidiano modorrento: ela sonha muito e conta alguns desses sonhos ao patrão durante o encontro.

Enfim, Lukéria é consciente de que ficará sozinha pelo resto dos seus dias, mas não reclama, pois sua experiência “das profundezas degradantes da existência” para citar Alexander Solzhenitsyn a levam a um estágio de transcendência espiritual em que ela valoriza as pequenas alegrias do dia-a-dia, incluindo a visita inesperada e rápida de um patrão que tem todas as condições de desfrutar da vida e está lá ao lado de Lukéria de passagem. O que é comovedor no conto e nos leva a uma empatia profunda é que a camponesa não tem pena de si mesma. É justamente por isso, por sua visão serena das coisas, sem melodramas, que seu sofrimento fica mais evidente para nós leitores do conto. Vemos à nossa frente o patrão afortunado, que no verão se diverte indo caçar pelos seus campos, e a camponesa mumificada pelos anos de reclusão e que morre algumas semanas mais tarde, depois desse encontro com o patrão, não tendo chegado aos 30 anos.

Esse contraponto entre a sorte de um e de outro nos mostra a crueldade e a injustiça da vida, mas também sua beleza, a beleza da solidariedade, da bondade, da empatia, da Natureza, por mais fugazes que sejam. É essa verdade que a epifania revela aos que choram profusamente ao lerem este conto, como foi meu caso. E uma epifania, feita da revelação de um momento na vida de um personagem, tem um poder de persuasão muito maior do que qualquer discurso filosófico ou político, como explica Solzhenitsyn em seu livro “Uma palavra de verdade …” De acordo com o prêmio Nobel de Literatura de 1970, a obra de arte, fruto da consciência aguda do artista sobre a beleza e a fealdade da contribuição humana, vai ao cerne da questão como nenhum outro tipo de discurso porque é visceral e autêntica, mostrando a vida como ela é, ao passo que um programa político ou um sistema metafísico podem ser simplesmente uma racionalização de interesses individuais que procuram prevalecer pelo convencimento.

Sobre isso já alertavam Will e Ariel Durant ao comentarem sobre a Enciclopédia que foi o marco do Iluminismo na França. O objetivo dos seus editores era tornar a razão o novo objeto de culto, fazer o conhecimento obtido pelo exercício das faculdades mentais sobrepor-se ao dogma, o progresso material advindo das conquistas científicas e tecnológicas sobrepor-se à contemplação resignada da morte. A razão proposta pelos autores dos verbetes da Enciclopédia podia livrar a humanidade das superstições, dos medos infundados, do fatalismo, do fanatismo religioso, mas ela também podia ser um instrumento de manipulação e opressão do homem pelo homem escondida sob a capa das verdades trazidas pela ciência: se Diderot tivesse vivido o suficiente ele teria visto os usos que o conhecimento científico teve para a indústria de matar pessoas, desde os canhões das guerras napoleônicas no século XIX até os artefatos nucleares no século XX.

Prezados leitores, o fato é que há verdades e verdades. As verdades dos cientistas que para os Enciclopedistas inaugurariam uma nova era na história da humanidade, livre como jamais do jugo da religião, e as verdades dos artistas, reveladas em cenas, em atos e falas de personagens que tocam no âmago da experiência humana, a qual vai além das nossas sensações, da nossa fisiologia, da nossa atividade cerebral. São relíquias vivas de um drama que se desenrola desde que o homem expressou sua consciência através de imagens e símbolos e se desenrolará enquanto o homo sapiens caminhar sobre a Terra.

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