Arte para quê?

Sócrates: E quanto à mais solene e admirável delas, a poesia trágica, pelo que ela zela? Seu intento e zelo são, segundo teu parecer, apenas deleitar os espectadores, ou também defendê-los, evitando pronunciar o que lhes for aprazível e deleitoso, porém nocivo, e dizendo e cantando o que não lhes for aprazível, porém benéfico, quer isso lhes deleite ou não? A poesia trágica te parece dispor-se a quê?

Cálicles: É evidente, Sócrates, que ela está volvida, sobretudo, ao prazer e ao deleite dos espectadores.

Sócrates: Então, Cálicles, não é isso o que há pouco afirmávamos ser a adulação?

Cálicles: Com certeza.

 

Trecho retirado do diálogo Górgias de Platão (428 a.C.-347 a.C.), na tradução de Daniel R. N. Lopes

Introduzir em uma cidade famosa por sua moralidade puritana uma forma de entretenimento que em quase todos os lugares havia glorificado a imoralidade? As tragédias quase sempre representavam um crime; elas não purgavam as paixões, como pensava Aristóteles; elas inflamavam as paixões, especialmente o sexo e a violência. As comédias raramente representavam o amor do casamento saudável; frequentemente elas riam da virtude, como mesmo Molière tinha feito em “O Misantropo”. Todo mundo sabia que os atores levavam vidas imorais e desregradas, e que a maior parte das atraentes atrizes da cena francesa eram modelos de promiscuidade, servindo como centros e fontes de corrupção em uma sociedade que as idolatrava.

 

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) sobre a luta do filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) para que não houvesse a legalização da atividade teatral em Genebra, sua cidade natal

    Prezados leitores, na semana passada lancei aqui neste meu humilde espaço mais uma das minhas perguntas sem resposta, indagando se a classe média no Brasil conseguirá praticar a virtude o suficiente para fazer o país andar em meio à corrupção e à violência geradas pelo crime organizado. Nesta semana, falarei de um outro aspecto da virtude, desta vez não relacionado às nossas transações cotidianas com empresas. Falarei da virtude em termos de comportamento moral do indivíduo nas suas relações pessoais. Será que existe em nossa sociedade um padrão a ser seguido sobre como namorar, casar, educar filhos? Ou o padrão é a quebra de padrões? Quem dita os padrões? Para responder a essas perguntas, voltarei ao passado para buscar momentos na história ocidental em que essas questões foram abordadas sob o prisma da influência – benéfica ou maléfica – da arte sobre o comportamento das pessoas.

    Um primeiro momento deu-se na Grécia antiga, nos séculos V e IV a.C. quando pensadores como Platão refletiram sobre a natureza da arte e sua função na sociedade. Conforme o trecho que abre este artigo, que toma como exemplo a poesia trágica, a arte é adulação. Seu objetivo é fazer o espectador ter uma experiência de prazer momentâneo, seja ao ouvir versos declamados, a melodia de uma música, ou assistir à atuação de um ator. Nesse sentido ela não é tekhne, a técnica que imprime certa forma à matéria com que trabalha, dando-lhe ordem e harmonia e expressando conhecimento sobre o que é o bem supremo para alma.

    A arte enquanto adulação não se preocupa com o que é benéfico para o indivíduo em termos do aprimoramento pessoal para agir eticamente, ela apenas lhe proporciona deleite que pode até ser benéfico para a alma, mas nesse caso é mera coincidência: não havendo tekhne por trás da adulação artística não há busca do conhecimento para fazer melhor e em fazendo melhor trilhar o caminho da virtude (arete). Portanto, para o Platão dos primeiros diálogos em que ele coloca Sócrates como um dos personagens, a arte, não sendo tekhne, não é verdadeiro conhecimento, pois o conhecimento está sempre associado à virtude: basta termos conhecimento do bem para praticarmos o bem. A arte é um esforço de tornar a pessoa feliz por um momento, não de torná-la sábia e portanto, virtuosa.

    Um segundo momento de reflexão sobre a função da arte deu-se no século XVIII, quando o movimento filosófico do Iluminismo pregava a liberdade de expressão e de pensamento, o que incluía a liberdade não só para os filósofos proporem seus sistemas metafísicos, mas para os artistas criarem e se exibirem. Ironicamente, Jean-Jacques Rousseau, apesar de ter frequentado os “philosophes”, como Diderot, D’Alembert e Voltaire, proponentes do triunfo da razão sobre a superstição, seguiu uma trilha oposta, enfocando os sentimentos e a subjetividade do indivíduo. Não crendo muito no poder da razão para ditar regras morais, o filósofo e escritor nascido em Genebra via o lado negro dessa liberdade: as pessoas poderiam usar seus recém-adquiridos direitos de livre pensar para justificar seus atos sórdidos ou pior, evitar que eles fossem detectados.

    Daí sua luta contra a abertura de teatros em Genebra, como queriam os “philosophes”. Conforme o trecho que abre este artigo, deixar que dramaturgos e comediantes retratassem criminosos e devassos para que eles tivessem a liberdade de se expressar e os espectadores de se divertir era um incentivo à imoralidade: a exibição de certos comportamentos acabava naturalizando-os e a aura que cercava os artistas, paradigmas da liberdade e da tolerância, acabava fazendo com que as pessoas os idolatrassem, mesmo diante do comportamento desregrado deles. Em suma, para Rousseau, o absolutismo da razão, proposto pelos “philosophes”, não ancorada em uma fé religiosa que estabelecesse as regras morais, fazia da criação artística, fruto da liberdade de pensamento que os cultuadores da razão propunham, um veículo para estimular o mau comportamento das pessoas pela mera imitação do que viam e ouviam.

    Prezados leitores, independentemente de discordarmos ou não das ideais filosóficas de Rousseau, sua constatação da influência da arte e dos artistas sobre os espectadores e ouvintes não é pertinente nos dias atuais, 300 anos depois? Os criadores em nossa sociedade não gozam de uma reputação especial justamente por terem a virtude máxima de desafiar os paradigmas sobre casamento, vida em família, relacionamentos amorosos? As pessoas não discutem as peripécias dos participantes de programas como o BIG BROTHER como se fossem algo autêntico e não encenado? Não há colunistas em jornais que analisam os episódios do BIG BROTHER? Nossos artistas não são chamados a opinar sobre tudo na grande mídia, incluindo políticas de saúde, políticas demográficas, políticas previdenciárias e políticas econômicas? Afinal o que é falar da liberação da maconha ou da cannabis? O que é falar sobre o direito ao aborto, o direito à mudança de sexo, e a arranjos familiares alternativos senão estabelecer princípios para tais políticas? Será que Rousseau não foi presciente ao observar a influência que os artistas, livres para pensar e criar e exibir-se teriam no comportamento das pessoas, ditando padrões mesmo que isso signifique a liberdade individual suprema de estabelecer seus próprios padrões?

    Enquanto o prestígio dos artistas aumentou exponencialmente nestes 300 anos, a arte que de tão livre, ficou tão adulatória, parece perder qualquer pretensão de ser algo mais do que mero entretenimento. Oxalá possamos recuperar o ideal platônico da tekhne e ela tenha mais a fazer por nós do que reforçar nossos comportamentos e nos mostre um novo conhecimento, uma nova virtude, uma nova areté.

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Quem pode nos salvar?

Mas eram os nobres que eram decadentes, era Luís XV que era corrupto; e era a aristocracia e a monarquia que caíram na Revolução. As massas – à exceção das turbas rurais e urbanas – mantinham as virtudes que salvam uma nação, e Greuze as retratava.

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução”, de Will Durant (1885-1981) e Ariel Durant (1898-1981) a respeito do pintor francês Jean-Baptiste Greuze (1725-1805)

Só entramos nessas áreas com autorização. Temos 200 líderes comunitários que nos ajudam. Mesmo assim, só recebemos autorização para fazer manutenção, ou seja: quando a comunidade é afetada. Nunca em caso de perda de energia (o chamado “gato”) ou para fazer um corte por falta de pagamento – lamenta Salas. […] Sem dar detalhes, a Light diz que “tem restrições em boa parte da sua área de concessão”. Acrescenta que “a situação se agrava com a rivalidade em regiões violentas e dominadas por poderes paralelos que, quando estão em conflito, não podem ser atendidas pela concessionária para preservar a vida de colaboradores e moradores.”

Trecho retirado do artigo “Sinal da Violência – Concessionárias são impedidas de prestar serviço em áreas dominadas por criminosos”

    Prezados leitores, na semana passada abordei a questão da violência atávica no Brasil, enfocando o cangaço do final do século 19 e do início do século XX no Nordeste e o Rio de Janeiro das milícias e do narcotráfico. Nesta semana, tratarei de outra manifestação da violência carioca que tem desdobramentos em vários níveis. Falo das dificuldades enfrentadas por operadoras de telefonia e de internet e por concessionárias de serviços públicos de operar em zonas conflagradas na Cidade Maravilhosa.

    Conforme o trecho que abre este artigo, para que a Light, a concessionária de energia elétrica que atua no Rio de Janeiro consiga entrar em uma comunidade, ela precisa pedir autorização dos líderes comunitários. Mas tal autorização tem limites. Os técnicos não podem entrar para detectar ligações clandestinas ou para cortar a luz por falta de pagamento. É preciso sempre que os moradores se beneficiem, mesmo que eles estejam lesando as empresas que prestam serviços de infraestrutura. As consequências para aqueles que não respeitam essas condicionantes são duras.

    O artigo relata que num caso um morador, ao perceber que o técnico estava conduzindo operação de rotina para detectar os gatos, saiu de sua casa e o ameaçou com uma arma de fogo para impedir que a gambiarra fosse desfeita. Noutro caso, depois de um temporal em que vários municípios ficaram sem luz, alguns veículos da Light foram sequestrados para fazer reparos dentro da comunidade sequestrante. Quanto aos municípios ao redor, azar o deles. No Natal, quando 25 mil pessoas ficaram sem energia em Maricá durante a noite, traficantes só deixaram a ENEL entrar para fazer reparos na rede de transmissão às 6 horas do dia 25. Na Praça Seca, na Cidade do Rio de Janeiro, a internet é cortada em certas ruas para que as pessoas sejam coagidas a contratar a internet paralela, que é claro, fruto de roubo das conexões oficiais

    Em suma, tanto os habitantes das comunidades quanto aqueles que exercem alguma liderança dentro delas, querem usufruir dos serviços que concessionárias e operadoras podem oferecer sem ter que arcar com o ônus, ou seja, com o pagamento ou com a necessidade de oferecer condições para que os técnicos possam trabalhar. Não admira que com tantas perdas causadas por ligações clandestinas, vandalismo de equipamentos e calotes dos consumidores, o Grupo Light tenha entrado em recuperação judicial em maio de 2023 e busque reestruturar cerca de R$ 11 bilhões de reais em dívidas.

    Qual o pior cenário que pode concretizar-se? Se a recuperação judicial da empresa não tiver sucesso e ela for à falência, será necessário que o governo do Estado realize a encampação, isto é, retome os serviços para que eles não sejam interrompidos pelo fato der a empresa não ter mais condições financeiras de continuar as operações. Isso envolverá, claro, aportes de recursos públicos para a manutenção dos serviços e prejuízos, já que a empresa deixará de pagar os impostos incidentes sobre suas atividades. Em suma, para o Poder Executivo do Estado, uma eventual falência e encampação da Light implicará aumento de despesas e diminuição de receitas.

    Considerando que o Rio de Janeiro, que está em Regime de Recuperação Fiscal desde 2017 e tem uma dívida com a União que segundo o governo estadual é de R$ 188 bilhões, se esse pior cenário se realizar a situação fiscal do Estado ficará ainda mais deteriorada. Qual será a solução? Flexibilizar ainda mais o pagamento da dívida com a União. Em bom português flexibilizar significa assinar outros “Devo não nego pago quando puder” para substituir os antigos, emitidos quando da implementação do último Plano de Recuperação Fiscal, em 2022.

    Em suma, a violência dos poderes paralelos que controlam determinadas porções do território do Estado do Rio de Janeiro, o comportamento dos moradores desses locais que desrespeitam a lei mas não querem ser punidos por isso, violam os direitos de empresas, inviabilizam suas atividades, o que requer a intervenção do Estado tanto no nível estadual quanto no federal para arcar com os prejuízos. Em última análise os desdobramentos econômicos, fiscais e morais da violência em terras cariocas são compartilhados por todos os brasileiros naquilo que eles têm de deletério.

    Diante dessa cascata de acontecimentos quem pode nos salvar? Na França da segunda metade do século XVIII o pintor Greuze tinha a resposta: era a classe média, que ele retratava em seus quadros desfrutando da paz e do modesto contentamento proporcionados pelo comportamento regrado, livre de excessos e virtuoso. Conforme o trecho que abre este artigo, analisando a obra de Greuze, que glorificava a pureza de sentimentos e a inocência das meninas, dos meninos, dos pais de família, das noivas que habitavam as pequenas cidades, Will Durant considerava que os personagens pintados por Greuze eram os que salvavam a França. Em meio à corrupção, ao cinismo, ao despudoramento da aristocracia, que levará ao golpe de morte dado a ela na Revolução, o filósofo e historiador americano vê a classe média como aquela que trabalhando e agindo de maneira ordeira carregará o país nas costas e viabilizará sua continuidade em meio ao turbilhão revolucionário.

    Prezados leitores, será que a classe média no Brasil terá a capacidade de praticar a virtude para fazer o país andar a despeito das ameaças da violência do crime organizado? Ou será que no final seremos todos corrompidos e acabaremos seguindo a máxima hobbesiana de sermos cada um o lobo de nós mesmos?

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Mercado de ideias x Mercado de armas

Por ter sido tropeiro e convivido, antes e depois de se tornar salteador, com a classe rica do sertão – classe interessada, de hábito, em alianças com o cangaço, fosse para a preservação do patrimônio, fosse para o extermínio de inimigos, fosse ainda para a divisão do apurado nas empreitadas de rapina, que tudo isso ocorreu em medida mais elevada do que normalmente se imagina – Lampião incorporava ao seu dia a dia novidades desconhecidas do matuto em geral. No fim dos anos 1920, causavam surpresa sua lanterna elétrica portátil, o flashlight, a capa de borracha e a garrafa térmica, mimos de poderosos de seu convívio.

Trecho retirado do livro Apagando o Lampião – Vida e Morte do Rei do Cangaço, de Frederico Pernambucano de Mello (1947- ), escritor, historiador e advogado brasileiro

O termo “narcomilícia” já vinha sendo empregado havia algum tempo pelos representantes da lei para designar as quadrilhas que uniam as táticas de comércio e drogas e de domínio de serviços públicos, como transporte, venda de gás, fornecimento de conexão com a internet e TV a cabo clandestinos. Mas o que se vê agora representa um passo inédito: um pacto estratégico com o objetivo de aumentar o poder bélico e o capital desses grupos.

Trecho retirado do artigo “Aliança Maldita” publicado na edição de Veja de 1º de março sobre a união entre narcotráfico e milícias no Rio de Janeiro

    Prezados leitores, na semana passada falei da importância da liberdade de expressão para viabilizar a tolerância mútua entre grupos na sociedade que não concordam sobre os princípios fundamentais do bem viver. Sem um consenso compartilhado por todos sobre o que pode ser objeto de discórdia e o que não pode, acabamos barrando ideias consideradas extremistas, estigmatizando-as e não dando a elas um lugar no mercado das ideias de que fala o cientista político americano John Mearsheimer. O resultado é que elas acabam se expressando de maneira delinquente como vimos no 8 de janeiro de 2023.

    O fato é que o Brasil ainda não conseguiu colocar em prática um regime liberal que viabilize a discussão, mesmo que ela não chegue a nenhuma conclusão, e assim que evite que as pessoas caiam na tentação de recorrer à violência para fazer valer seus pontos. Meu objetivo nesta semana será explorar as raízes desse uso da força em nossa história, enfocando um espaço geográfico específico, o sertão nordestino, onde viveu e morreu Virgulino Ferreira da Silva, (1898-1938), o famoso Lampião e traçando um paralelo com outro espaço geográfico, o Rio de Janeiro, berço tanto de grupos paramilitares quanto de organizações do crime organizado.

    Em sua biografia de Lampião, Frederico Pernambucano de Mello explica as características do sertão nordestino que o tornaram o terreno propício para o surgimento do cangaço. Devido às condições climáticas e geográficas, a terra da caatinga, seca e de solo pouco profundo,  não se prestou à prática da agricultura como ocorreu na Zona da Mata, onde florescia a Mata Atlântica. A única atividade econômica desenvolvida no interior do Nordeste desde o início da colonização foi a pecuária, o que não foi suficiente para gerar empregos que provessem à subsistência das pessoas. Em suma, quem não nascia filho de fazendeiro ou agregado de fazendeiro tinha poucas chances de progredir na vida. As condições eram mais inclementes ainda considerando o modo como o território foi conquistado: à custa do extermínio dos índios tapuias na chamada Guerra dos Bárbaros que se deu entre 1687 e 1720. Nesse ponto há mais uma desvantagem entre o sertão e o litoral. Enquanto que nas áreas ocupadas pela cultura da cana de açúcar os índios tupis  estavam mais afeitos à negociação e acabaram estabelecendo alianças com os colonizadores, no interior estes eram recebidos com flechas envenenadas.

    Em suma, tem-se um cenário de pouco dinamismo econômico, pobreza e convivência cotidiana com a violência, seja contra os índios seja contra os animais de criação que seriam abatidos. Isso levou o sertão do Nordeste a ter características feudais, no sentido de ser autárquico, isto é, de resolver seus problemas de maneira independente, sem recorrer às autoridades públicas, que ficavam no litoral, e recorrendo à força, quer para conquistar território dos nativos, quer para tomar dos outros bens e riquezas cuja produção era escassa. E é isso que Lampião fez ao longo de sua curta existência, até ser morto pelas forças policiais na gruta de Angico, em Sergipe.

    Conforme o trecho que abre este artigo, o rei do cangaço tinha ao seu dispor os melhores equipamentos então disponíveis para se dedicar a sua profissão que era a de vender proteção, ser instrumento de vingança contra inimigos de latifundiários e lutar contra as forças da lei e da ordem, as quais bem ou mal eram o antípoda contra esse mundo de justiça privada e de uso da violência indiscriminadamente para resolver conflitos. E como exercia seu ofício de maneira muito boa, afinal era um ótimo líder militar que tinha sob seu comando direto e indireto mais de duzentos homens, Lampião era bem pago e carregava consigo em seus bornais a riqueza acumulada na forma de objetos em ouro: moedas, crucifixo, aliança, lapiseira, tesoura de apurar ponta de charuto, tabaqueira. Que lugar mais seguro do que o próprio corpo do chefe guerreiro para guardar os valores conseguidos à bala e a facadas? Afinal em uma sociedade com baixo nível de diálogo e portanto de confiança, com quem depositar seus bens mais preciosos?

    Grupos armados prestando serviços de proteção e extermínio para outros grupos, grande movimentação de valores econômicos, líderes que exercem controle férreo sobre seus comandados. Quase um século depois e a história se repete em outras paragens brasileiras, desta vez no Rio de Janeiro, palco das peripécias das milícias que, conforme o trecho que abre este artigo, vendem serviços públicos sem serem autoridades estatais e serviços de proteção para narcotraficantes. Como explicar o fenômeno no Rio de Janeiro, que afinal está no litoral e foi capital do Brasil de 1763 a 1960?

    A explicação consensual para a estagnação econômica da Cidade Maravilhosa é justamente o fato de ela ter deixado de ser capital e portanto de concentrar o funcionalismo público federal, que se mudou para Brasília. Não é meu propósito aqui explorar todos os motivos que fizeram o Rio de Janeiro ter deixado de ser nossa Paris, o lugar em que as modas e tendências eram lançadas e irradiadas pelo resto do país, o lugar que dava o tom da nossa civilização tropical. Basta dizer que nossa violência atávica se recicla, veste novas roupagens, mas continua funcionando sob a tríade da criação de grupos armados dedicados ao uso da força, da falta de oportunidades para as pessoas terem profissão lícita e a existência de líderes que organizam esses grupos e os tornam eficazes. Ontem Lampião, o cangaceiro sertanejo, hoje Zinho, o miliciano carioca, citado na reportagem de Veja.

    Prezados leitores, será que um dia teremos o mercado de ideias do liberalismo de John Mearsheimer ao invés de termos um mercado de armas e de assassinatos encomendados?    Aguardemos, divididos entre a esperança e o fatalismo.

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Tolerância para quê?

Piers Morgan: Veja, tivemos uma conversa fascinante, que cobriu vários assuntos, conduzida com respeito e cortesia. Por que não temos mais conversas desse tipo no mundo? Por que esse tipo de conversa ou debate foi substituído por um gritando com o outro e as pessoas adotando posturas tribais nas mídias sociais e querendo literalmente silenciar qualquer pessoa que tenha uma visão diferente?

John Mearsheimer: Eu não tenho certeza que eu tenha uma boa resposta. Eu certamente concordo com a sua descrição sobre o que está acontecendo. Na verdade, eu acho bem deprimente que as pessoas xinguem umas às outras, gritem umas com as outras. Além disso, vários tipos de pessoas que têm opiniões fora do convencional são canceladas na grande mídia e eu poderia contar várias histórias a esse respeito. Não acho que isso seja saudável. Eu tenho uma visão antiquada de como as democracias liberais devem funcionar. Nós supostamente devemos ter um mercado de ideias. Espera-se que as pessoas consigam trocar ideias e se as pessoas acharem que o John Mearsheimer tem ideias tolas sobre a Ucrânia ou sobre o Oriente Médio, está tudo bem e devemos discutir sobre isso. Se minhas ideias são tão tolas as pessoas devem ser capazes de usar os fatos e a lógica para destruí-las. Mas você não tem muito disso agora. As pessoas são canceladas ou se elas estão debatendo elas tendem a ser caluniadas se não estiverem de acordo com a visão da maioria.

Piers Morgan: É extraordinário não? Que em democracias como os Estados Unidos, o Reino Unido e em muitas outras, você veja pessoas que se definem como liberais se comportando como os fascistas que elas dizem odiar.

John Mearsheimer: Sem dúvida, quero dizer, os liberais deveriam ser tolerantes. Se você pensar sobre o liberalismo, a essência do liberalismo, o liberalismo baseia-se na premissa de que as pessoas não conseguem concordar sobre os princípios fundamentais. É muito importante entender isso. Se você falar de Hobbes, de Locke, eles entendiam que as pessoas não conseguem chegar a um acordo sobre os princípios fundamentais. O que você tem que fazer é criar uma sociedade em que as pessoas têm a oportunidade de viver a vida de acordo com seus princípios fundamentais e elas têm que ter a liberdade de expressar suas opiniões sem se preocupar em serem atacadas por uma pessoa que não concorde com elas. E uma coisa importante que se assenta debaixo desse empreendimento liberal é a norma da tolerância. Se nós discordamos eu tenho que tolerar o fato de que você tem uma determinada visão e você tem que tolerar o fato de que eu tenho uma visão diferente. É isso que nos mantém juntos e faz com que a sociedade funcione.

Piers Morgan: Sim, exato, essa é a maneira como você resolve os problemas da sociedade. Quando você debate de maneira vigorosa e você acha pontos de concordância e consenso. Você não se sente ameaçado ao fazer isso, não se sente diminuído. Você vê o bem maior, isso é progresso. Você vem, você debate com outras pessoas, você argumenta, você discute e você vem com uma melhor solução.

 

    Prezados leitores, em primeiro lugar, perdoem-me uma citação tão longa. Ela é o trecho de uma conversa de 50 minutos entre o jornalista britânico Piers Morgan e o cientista político e especialista em relações internacionais americano John Mearsheimer que ilustra à perfeição aquilo que John Mearsheimer explica sobre liberalismo, democracia e tolerância. Explico-me.

    Piers Morgan e John Mearsheimer discordaram profundamente sobre os dois tópicos abordados inicialmente antes de eles trocarem ideias filosóficas sobre o regime político no Ocidente. Primeiramente em relação à guerra na Ucrânia. Piers Morgan considera o presidente Vladimir Putin um homem perigoso que quer reconstruir o império russo invadindo outros países. Para Morgan, o erro do Ocidente foi não ter feito a Ucrânia entrar na OTAN antes da invasão de 24 de fevereiro de 2022, pois se a Ucrânia já fosse parte da OTAN o presidente russo não teria invadido o país vizinho, pois este teria tido garantias de defesa dos outros Estados membros. Mearsheimer considera que não há nada nas atitudes e nas palavras do ex-agente da KGB que possa respaldar a ideia de que a Rússia quer absorver os países ao seu redor e a Operação Militar Especial na Ucrânia foi desencadeada tão somente para não permitir que a Ucrânia seja aceita na OTAN.

    O segundo tópico abordado foi a guerra em Gaza. Piers Morgan lamenta profundamente as mortes de civis palestinos, mas considera que não será possível vencer o Hamas sem atingir civis porque os membros do Hamas se misturam aos civis de propósito. Mearsheimer considera que é injustificável o que Israel está fazendo: o bombardeio de residências, hospitais, escolas, cemitérios e universidades está matando pessoas que não pertencem ao Hamas, a destruição da infraestrutura inviabiliza a vida para os palestinos em Gaza e os impedimentos que Israel coloca para a ajuda humanitária estão causando grande sofrimento em termos de fome e doenças. Para o americano não há como justificar a matança dos palestinos como se isso fosse necessário para atingir o objetivo de acabar com o Hamas. O Hamas não será derrotado dessa forma, ao contrário, terá mais oportunidades de recrutamento porque muitos adolescentes ficarão órfãos de pai e mãe. Se o governo de Israel continua com essa estratégia de tornar a vida inviável para os palestinos em Gaza é porque eles querem mesmo é se livrar deles não porque tenham o objetivo de destruir o Hamas, justamente porque sabem ser tal tarefa impossível.

    Em suma, uma discussão pontuada por discordâncias, mas como Piers Morgan mesmo afirma, uma discussão polida, entre pessoas que praticam a virtude da tolerância. É esse o ponto a que queria chegar depois desse introito sobre o teor do debate entre os dois. O que é tolerância e para que serve? A tolerância em um regime liberal é a disposição que cada cidadão deve ter na arena pública de ouvir opiniões discordantes da sua e ter duas atitudes: em primeiro lugar tentar combatê-la com fatos e o desenvolvimento de argumentos com base em fatos; em segundo lugar, não rotular a pessoa que expressa tal opinião disso ou daquilo porque ela não concorda com o cidadão que se dispôs ao debate.

    Num regime liberal o cidadão deve sempre ter em mente que nem sempre é possível ganhar o debate, pois muitos fatores estão em jogo para tornar o resultado complexo. Nem sempre as pessoas têm acesso aos mesmos fatos: afinal elas têm diferentes níveis de interesse por determinado assunto, e isso determinará sua disposição de ir atrás do que ocorreu. Pior, mesmo que elas estejam dispostas a se informarem sobre o tema, elas podem acabar consultando fontes que têm sua própria agenda política e por isso omitem certos acontecimentos e dão exagerada importância a outros.

    Uma nova camada de dificuldade se coloca mesmo quando há acesso a mais ou menos os mesmos fatos, pois com base naquilo que Mearsheimer chama de princípios fundamentais, isto é os valores morais da pessoa, as regras que ela segue para bem viver, ela pode dar mais importância a certas coisas de maneira a determinar seu julgamento sobre o assunto. Um exemplo disso é a atitude favorável dos evangélicos em relação a Israel. Eles até admitem que Gaza está sendo destruída, mas sua simpatia pelo povo da Bíblia os faz enfatizar a necessidade de Israel defender-se a qualquer custo para sobreviver como Estado para o povo judeu, tal como colocado nas Escrituras.

    Se tais obstáculos muitas vezes impedem que as pessoas cheguem a conclusões comuns o que fazer? A resposta é tolerar. Tolerar nossas fraquezas, tolerar que todos nós muitas vezes resvalamos para racionalizações, isto é, para o uso da razão não para chegar a uma conclusão, mas para dar um verniz de respeitabilidade a conclusões obtidas por preferências individuais e irredutíveis. Tolerar o fato de que todos nós às vezes falamos sobre coisas das quais não temos muito conhecimento, mas em um mundo digital em que qualquer um pode ter a palavra o tempo todo, é tentador palpitar sobre qualquer coisa que seja notícia.

    E tolerar para quê? Tolerar para que todos possamos permanecer no mesmo barco, tentando achar o melhor caminho para a solução dos problemas, sem que nos achemos no direito de depredar o patrimônio público como os manifestantes de 8 de janeiro de 2023 fizeram porque estavam descontentes com os resultados da eleição de Lula para a presidência, sem que nos achemos no direito de barrar a entrada no metrô de pessoas que foram à manifestação de apoio ao Bolsonaro de maneira pacífica sob a justificativa de que são todos fascistas e não podem ser tolerados. Como ensinou um dos pais do liberalismo no século XX, John Rawls em seu livro “Uma Teoria da Justiça”, já citado anteriormente neste meu humilde espaço, uma sociedade democrática precisa dar espaço à expressão de opiniões não democráticas desde que tal expressão não resvale para a violência.

    Prezados leitores, parafraseando John Mearsheimer, talvez vocês não concordem com o que estou a dizer sobre a importância do exercício máximo da tolerância e achem que sou tola ou estúpida. Não importa, só peço a vocês que exerçam a virtude de aguentar ouvir “coisas absurdas” para podermos criar um clima de confiança e boa vontade na sociedade de forma que possamos chegar a consensos a respeito de assuntos menos polêmicos. E o fato é que numericamente falando há bem mais assuntos não polêmicos do que polêmicos, mas os polêmicos atraem mais nossa atenção, porque lidam com nosso instinto tribalista. Só crendo nesse exercício da tolerância é que nossa sociedade conseguirá obter respostas aos desafios e progredirá, em prol do bem comum.

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Progresso para quê?

Papa Bento: O progresso no conhecimento, na ciência, nos confortos e no poder é só um progresso dos meios; se não houver a melhoria dos fins, objetivos ou desejos, o progresso é uma ilusão. A razão aprimora os instrumentos, mas os fins são determinados pelos instintos formados antes do nascimento e estabelecidos antes que a razão possa florescer.

Trecho retirado do livro “A Era de Voltaire” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981) em que o escritor francês Voltaire (1694-1778) tem um diálogo fictício no Elísio com o papa Bento XIV (1675-1758)

Rousseau havia dado expressão a um problema que aparece em qualquer sociedade avançada. Os frutos da tecnologia compensam a pressa, a tensão, a vista, os barulhos e os odores de uma vida industrializada? O esclarecimento prejudica a moralidade? É sábio seguir a ciência até a destruição mútua e a filosofia até o desencanto com as esperanças revigorantes?

Trecho retirado do livro “Rousseau e a Revolução” do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) e da historiadora e escritora Ariel Durant (1898-1981) sobre o escritor e filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

    Prezados leitores, quem nunca ouviu falar na máxima que normalmente resume o pensamento de Jean-Jacques Rousseau, tal como ele nos é transmitido: “O homem é bom, a sociedade o corrompe”? Esse conceito de uma sociedade corruptora começou a ser esboçado pelo escritor e filósofo genebrino quando ele escreveu um ensaio para concorrer a um prêmio oferecido em 1749 pela Academia de Dijon, a qual propunha o seguinte tema: “A restauração das ciências e das artes contribuiu para corromper ou purificar a moral? Para responder a essa pergunta, Rousseau elaborou seu “Discurso sobre as artes e as ciências”, no qual ele aponta os males da civilização.

    A experiência de Rousseau com a civilização era marcada por sua estadia em Paris, cidade em que ele conheceu e frequentou o grupo dos philosophes que criticavam a Igreja e propunham a organização da sociedade sobre bases racionais. Como vimos na semana passada, o escritor e filósofo genebrino era uma alma sensível, sensível ao ponto de indignar-se tremendamente com o comportamento de um aristocrata francês, o Conde Pierre-Auguste de Montaigu, que não lhe pagara o salário, mas que apesar de seu comportamento lamentável continuava gozando de respeitabilidade na sociedade porque sabia seguir as regras da etiqueta, da polidez, da civilidade.

    Sob essa perspectiva, a reputação da pessoa em uma sociedade sofisticada como a francesa era baseada na mais pura artificialidade. As pessoas trocavam fórmulas polidas entre si como se tivessem grande estima umas pelas outras, mantinham uma aparência elegante, à base de perucas e roupas bem talhadas, como se fossem todas belas de corpo e de alma. Nada mais longe da verdade. Aquela fachada reluzente formada por palavras bem ditas e figuras estilosas tinha atrás de si a corrupção moral, a licenciosidade incentivada pela sensualidade da arte, a obsessão com a fofoca maliciosa e as tiradas inteligentes e irreverentes, o esnobismo social, as extravagâncias indiferentes dos ricos financiadas pela extorsão dos pobres. De que adiantava o exercício da razão se isso levava à dessecação da alma, perdida nos becos sem saída das especulações filosóficas que não chegavam a certeza nenhuma e tornavam o homem desiludido a respeito do significado da sua vida e do seu destino?

    A solução para Rousseau era uma volta à simplicidade do campo, à vida rústica e autêntica dos camponeses da sua Suíça natal, terra de indivíduos livres, corajosos, resilientes face à diversidade, imunes aos canto da sereia da filosofia, da ciência, da literatura e da arte, porque estavam dedicados ao trabalho no campo que lhes dava sustento e prosperidade. Daí que a resposta dada pelo “Discurso sobre as artes e as ciências” à pergunta colocada pela Academia de Dijon foi que a restauração das ciências e das artes contribuiu para corromper a moral, tornando as pessoas hipócritas, fazendo-as perder a paz de espírito pelo abandono das antigas crenças religiosas e a inocência pelo aumento da complexidade das interações humanas, que incentivava comportamentos malévolos.

    Conforme mostra o trecho que abre este artigo, Rousseau revelou o lado negro da civilização. É certo que ela proporciona mais conforto material, liberando certos grupos para se dedicarem a ter ideais mais sofisticadas que levam a novas invenções, que por sua vez aumentam o conforto material, perpetuando o círculo virtuoso. Mas será que tudo isso vale a pena se pensarmos no custo em termos de deterioração das relações humanas em um ambiente competitivo e hipócrita em que o importante é ter sucesso e brilhar a qualquer custo? Onde fica o sentimento, o amor, a amizade nesse desfile de vaidades? E mais, onde fica a fé cristã, que havia sido o baluarte da sociedade por centenas de anos?

    O perigo do progresso para a alma do homem também é colocado pelo Papa Bento XIV (1675-1758) na sua defesa da religião frente à Voltaire (1694-1778), conforme a versão de Will e Ariel Durant. Conforme o trecho que abre este artigo, o problema de uma sociedade em que não há religião instituída é que a razão só permite a progressão dos meios de que dispõe o homem para atingir seus objetivos. Para o Papa a razão jamais conseguirá aprimorar os fins a que nos propomos, porque esses fins são instintivos. Daí ser o papel da religião estabelecer tais fins, impondo restrições a esses instintos, pois do contrário a razão torna-se a prostituta dos desejos, isto é, serve ao desejo que se impõe com mais força, estabelecendo narrativas para justificá-lo e dar-lhe vazão.

    Prezados leitores, há alguns meses eu citei aqui neste humilde espaço o cientista político John Mearsheimer, que alertava para o fato de em pleno século XXI ainda não termos chegado a um consenso sobre como viver a boa vida, pois temos discordâncias fundamentais sobre valores. Nesse sentido, as palavras do Papa Bento XIV e as de Rousseau sobre os aspectos negativos do progresso mostram-se relevantes à luz dos acontecimentos atuais. Considerando a guerra na Ucrânia e a guerra em Gaza, que se desenrolam sem que nenhum princípio do direito internacional tenha podido ser aplicado até o momento, fica flagrante a discrepância entre nossos meios tecnológicos de destruição mútua e nossa capacidade de estabelecer relações saudáveis entre os diferentes povos. Será que nunca conseguiremos preencher essa lacuna? Será que nunca chegaremos a um consenso sobre o certo e o errado e sobre o significado da vida para juntos embarcarmos na mesma jornada? Se não conseguirmos, progresso para quê, se ele vai nos levar à hecatombe?

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